Chavismo como redentor social: entre o mito e a realidade. Uma crítica pela esquerda. (Post 01)

Resumo: É muito forte a imagem do chavismo como um transformador social, seja no meio da esquerda acadêmica como no seio dos movimentos populares. Nesta série de posts são discutidos elementos que, na ótica aqui enfocada, devem ser levados em conta quando se pretenda uma compreensão daquele processo político venezuelano mais fundada nos elementos de classe. 
Manifestação popular em Caracas/Venezuela
Explicações:
  1. Aviso aos navegantes. Se qualquer crítica ao chavismo configura apoio ao imperialismo e posição neoliberal. Então, por-favor, pare a leitura por aqui mesmo. Você já tem o conceito pré-constituído intransponível. E antes de qualquer denúncia de “enviado da revista Veja” (argh!) ou acusação de “inocente útil, que faz a força da direita pensando ser de esquerda”, teremos que dialogar, em outro momento, sobre o papel histórico-social dessa esquerda (exclusivamente) pragmática.
  2. Lembre-se que na proposta do site (que representa certa “linha editorial”, fazendo uma comparação lá não muito das melhores) diz o site diz que irá dialogar com a esquerda que tem como limite as reformas sociais, bem como que o objetivo é lê de modo crítico a realidade social.
  3. O texto está dividido em 4 partes, cada uma pode ser lida de modo isolado, que se faz inteligível. Todavia, o conjunto expressa a clareza e a totalidade do argumento utilizado.
  4. Para melhor compreensão, os posts serão divididos em 4 temas. Em todos haverá a repetição da introdução e destas observações.
  5. Chavismo significa uma síntese das ações, discursos e visão de mundo do líder venezuelano Hugo Cháves, já falecido e atualmente sob o comando de Maduro.

Introdução
Em níveis e ritmos desiguais, desenvolvem-se na América Latina vários focos de lutas sociais e a Venezuela é um deles. É fácil observar que uma das peculiaridades que cerca a experiência venezuelana, vem sendo a de que, com freqüência é tomada como exemplo de projeto ou de processo de transição ao socialismo. Boa parte dos lutadores sociais, várias lideranças de esquerda de massa e parte da própria massa trabalhadora acreditam que a Venezuela com o chavismo é uma referência: no seu imaginário Chávez figura como um aliado da revolução latino-americana, um líder comprometido com a classe trabalhadora e até com o socialismo.
Sabemos que Chávez efetuou nacionalizações como a da fábrica Sidor que, junto com sua política social assistencialista, constituem elementos que reforçam, em certo setor da esquerda, o otimismo em torno de sua imagem. Há quem imagine que se dá, através do chavismo, “um poder comunal que desmonta progressivamente o Estado burguês” (SANJUAN - 1). Em artigo da Monthly Review, imagina-se que “Chávez está focando a Venezuela como um país que está rompendo com sua história colonial imperialista; nos dois ou três anos mais recentes essa ruptura vem sendo feita de uma forma sistemática no sentido da construção de uma sociedade socialista” (DOWD -2).
No Brasil, toda uma intelectualidade do campo da esquerda incensa o chavismo e até chega a acreditar que seus objetivos são revolucionários. Esta linha de pensamento “está exemplificada em um artigo de Tariq Ali, onde diz: ‘Há algumas semanas tive uma longa conversa com Chávez em Caracas. Ficou claro que o que busca o presidente não é nada mais que a criação de uma democracia social radical, que tenta dar poder aos estratos mais baixos da sociedade. Nestes tempos de desregulamentação, privatização e do modelo anglo-saxônico, em que a economia dita a política, os objetivos de Chávez são revolucionários, ainda que as medidas propostas não sejam diferentes das do governo Attlee na Grã-Bretanha do pós-guerra” (WEIL -3).
Qualquer movimento crítico ao neoliberalismo, às oligarquias, já deve merecer apoio da esquerda, este é o ponto-de-partida de muito do apoio que recebeu e continua recebendo o chavismo por parte da esquerda. Plínio de Arruda argumenta que “coube ao coronel Hugo Chávez Frias expressar a revolta da massa popular (...) e liderar a derrubada da oligarquia. Nenhum progressista pode negar-lhe apoio” (SAMPAIO - 4).
Ignácio Ramonet (5) fala em “reinvenção da esquerda” através do chavismo e proclama que “o balanço do governo Chávez é espetacular” e que Chávez promove mudança social com participação social.
Tentando chamar a atenção para outro olhar, o foco desta série de posts vem a ser o de trazer ao debate determinados problemas do processo encabeçado pela direção chavista na Venezuela.
A idéia central a ser desenvolvida é a de que aquela imagem do governo chavista – como liderança empenhada na construção do socialismo – só pode ser mantida e alimentada desde que sejam desconsiderados 1) a efetiva relação de Chávez com a classe trabalhadora, 2) a natureza das nacionalizações e da política econômica do seu governo, 3) a verdadeira relação do chavismo com a burguesia local e internacional e 4) o contexto político no qual se movimenta o chavismo com sua política atual.

1. Chavez e a classe trabalhadora
Muitos dos que enaltecem o chavismo alimentam a idéia de que este se desenvolve nos marcos do neo-socialismo ou “socialismo do século XXI”, experiência que pretende ser uma renovação/superação em relação aos processos burocráticos do stalinismo da URSS ou similares. Defendem a tese pertinente de que a classe trabalhadora deve ser o sujeito da sua história. Pensam no processo chavista a partir desse pressuposto.
O problema é que não há o menor sinal nesse sentido, a partir do governo, a partir da cúpula chavista. A semi-nacionalização da Sidor, por exemplo, foi conseguida na marra e sob repressão policial... chavista. Ou seja, provavelmente uma boa parte dos trabalhadores da empresa Sidor não esperava que sua rebelião e ocupação de fábrica contra os patrões que os exploram fosse brutalmente reprimida pela polícia chavista. A questão que se coloca é inevitável: se o “objetivo” do chavismo tivesse a ver com independência política da classe trabalhadora por que reprimir a ocupação operária da Sidor?
As centenas de camponeses assassinados a bala pelo latifúndio venezuelano vem a ser outro processo que aponta na mesma direção. E, da mesma forma, embora em outra esfera, existe a política do governo de reação e represália aos militantes e movimentos sociais que não se filiarem e não se enquadrarem no partido (PSUV - Partido Socialista Unificado da Venezuela). Tenta-se aqui, uma espécie de estatização do partido (ou fusão partido-Estado).
Em outras palavras, a relação do governo com a classe trabalhadora é mais problemática e menos respeitosa da independência política do proletariado do que parece. Defender que o proletariado se torne sujeito político e, ao mesmo tempo, apoiar o chavismo, na prática, não são idéias que, na prática, estejam coincidindo ou convergindo. Esse dado vem sendo rigorosamente maquiado ou minimizado pelos simpatizantes do chavismo. Com isso – na prática - se nega-se precisamente aquele pressuposto básico do socialismo do século XX ou de qualquer experiência social que mereça fazer parte da categoria de socialismo: a classe trabalhadora como protagonista político do processo.
No caso do governo chavista é ainda pior: ele desenvolve, simultaneamente, um processo intenso e cotidiano de cooptação e manipulação ideológica das camadas sociais mais empobrecidas e espoliadas pela petro-economia capitalista venezuelana. Um maciço programa assistencialista atrai amplo apoio popular e da maior parte dos trabalhadores para o chavismo. Só que, simultaneamente, tais projetos sociais marcham bem detrás, primeiro, das necessidades reais da própria população pobre e, segundo, da imprescindível combinação com a autonomia política e organizativa do sujeito social que efetivamente decide o rumo, a sorte e o desfecho de qualquer experiência revolucionária ou socialista.
 O chavismo não revela o menor pendor nesse sentido (para além do palavreado “socialista”). Ao organizar seu partido único, o PSUV, o chavismo trata de estruturar um partido dos trabalhadores com a burguesia. É conhecido o apelo do então Hugo Chávez aos “empresários nacionalistas” a construírem o PSUV. Ele associa trabalhadores e patronal dentro do mesmo partido e qualquer marxista mais atento sabe o que isso representa em termos de cabresto, trava, frente à necessária independência política dos trabalhadores.
Isso ocorreu com partidos semelhantes como o peronismo na Argentina (partido justicialista), o trabalhismo no Brasil (velho PTB) e tantos outros. O PT no Brasil, mesmo tendo outra origem, terminou na mesma vala: um partido da ordem, mal disfarçado de socialista. É a repetição conclusiva da história: os trabalhadores sempre saem perdendo, submetidos a direções burguesas e pequeno-burguesas.
O chavismo acredita no capitalismo que distribui riqueza, que supera a desigualdade social (“socialismo com empresários” como diz ele) ou em uma espécie anômala de capitalismo socialista.
O que ele não diz, mas trata de garantir, através da sua prática política de atrelar o movimento sindical ao governo, é que seu “socialismo” inclui submissão dos trabalhadores ao Estado. Esta é a dinâmica e a natureza do núcleo chavista em sua relação com os trabalhadores venezuelanos. Este tipo de experiência, em suas mais diversas variantes é sobejamente conhecido na América Latina e não guarda coincidência com a idéia do socialismo, por exemplo, de Marx.
Em processos semelhantes, do tipo nacionalista, na América Latina, como no México do governo nacionalista de Cárdenas, anos 30, ou na Argentina de Perón, os “sindicatos foram praticamente estatizados (legal e financeiramente) e postos sobre o controle de burocratas sindicais incondicionais ao governo (verdadeiros funcionários estatais mais que dirigentes operários) que impuseram um funcionamento totalitário, praticamente sem democracia operária. Para exercer esse controle, esses movimentos contaram com dois elementos favoráveis: por um lado, as medidas anti-imperialistas e as concessões às massas fizeram com que grande parte da classe trabalhadora os vissem como "seu" partido e "seu" governo. Por outro, foram ajudados, de distintas formas, pela traição dos partidos operários burocráticos e reformistas. Na Argentina, o PC e o PS se aliaram aos americanos, a Igreja e o setor mais reacionário da burguesia argentina contra o peronismo, abrindo assim o caminho para a influência de Perón sobre as massas. No México, o PC foi uma das pontas de lança da burocratização e da estatização dos sindicatos” (ITURBE - 6).
Ora, o controle político do movimento de massas por um lado e, por outro, a estreita convergência com os interesses econômicos de alguns setores burgueses da Venezuela, são os marcos do chavismo. As tão propagandeadas nacionalizações fazem parte e são funcionais a esse mesmo processo.
 Continua.

Referências:
(1) SANJUAN, Ana Maria, 2007. Claro-escuros bolivarianos. In: Le Monde Diplomatique – BRASIL, São Paulo, n. 3, outubro 2007, p. 10-12.
(2) DOWD, Doug, 2007. Venezuela: Who could have imagined? In: Monthly Review, may 2007, volume 59, n. 1. Disponível em: www.monthlyreview.org
(3) WEIL, Joseph, 2004. O que é o chavismo? Nacionalismo burguês em tempos de recolonização. In: Marxismo Vivo, São Paulo, n. 10, novembro 2004, p. 73 a 82.
(4) SAMPAIO, Plínio de Arruda, 2007. Populismo ou revolução? In: Le Monde Diplomatique – BRASIL, São Paulo, n. 3, outubro 2007, p. 13.
(5) RAMONET, Ignácio, 2007. Hugo Chávez. In: Le Monde Diplomatique – BRASIL, São Paulo, n. 3, outubro 2007, p. 13.
(6) ITURBE, Alejandro, 2004. Passado e presente do nacionalismo burguês. In: Marxismo Vivo, São Paulo, n. 10, novembro 2004, p. 68 a 72.




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