Crítica às Relações Internacionais: o falseamento da Ciência do Direito e a conservação dos interesses capitalistas.

Nesses dias estive participando de algumas bancas para a disciplina Direito Internacional (público e privado). Deu-me um desespero. Não dos alunos, mas dos seus orientadores e fontes de pesquisa... 
Resumo: Quando se fala da sociedade internacional, tudo se passa como se todos os interesses fossem convergentes. Nenhuma alusão se faz realmente aos conflitos que a dividem. Aqui existe mais do que uma simplificação, há o falseamento da realidade. A organização internacional corresponde, em larga medida, aos interesses dos Estados dominantes, isto é, dos Estados capitalistas.
direito internacional, imperialismo, capitalismo
O que poderia ser o interesse em comum ou ponto de solidariedade da sociedade internacional? O livre mercado? O humanismo? O meio ambiente? Ou a classe trabalhadora?
Relações internacionais... eis um estudo absolutamente não habitual nos cursos de Direito. O aluno encontrará o Direito Internacional (público ou privado) com base na classificação dos ramos do Direito. Nenhuma ligação é estabelecida entre esse Direito internacional e o Direito nacional: a distinção aparece como puramente nominalista, do tipo: o direito nacional é o que rege as relações nas quais não intervém nenhum elemento estrangeiro, enquanto que, quando um elemento estrangeiro se encontra numa relação de direito, trata-se de Direito internacional.
A única questão que preocupa o jurista é a fraqueza de um Direito internacional insuficientemente repressivo, o que poderia fazer duvidar de que se trate mesmo de um Direito. Em geral, os autores concluem daqui, ou que o Direito internacional é ainda jovem, pouco evoluído para explicar esta imperfeição, ou que esse Direito, apesar de tudo, conhece sanções que não é lícito negligenciar, mesmo se elas não são lá muito eficazes. Creio que eles não conheceram a política de George W. Bush?
A abstração e o idealismo são tais que nenhuma dúvida maior virá perturbar a harmonia do Direito internacional. É que a apresentação do Direito internacional habitual vem confirmar os “a priori” ou as “pré-noções” produzidas pela nossa sociedade (no sentido mais lato, a sociedade dos Estados capitalistas). Explico: não pretendo negar a existência da sociedade internacional ou do Direito internacional, afinal como negar a presença e o funcionamento de mais de uma centena de Estados? Quem duvidaria da existência dos múltiplos organismos internacionais, dos tratados entre Estados, das conferências e das pessoas internacionais?
Falo, portanto, de uma coisa completamente diferente: quero simplesmente dizer que a maneira como se apresenta essa sociedade internacional e as regras que lhe são aplicáveis é particularmente orientada. Utilizo um exemplo disso, precisamente o da noção de sociedade internacional com todas as conseqüências que a ela estão ligadas. Aparentemente, o que há de mais natural do que falar da sociedade internacional? É preciso desconfiar sempre das aparências naturais, aqui mais do que em qualquer outro lado. Com efeito, o singular utilizado nesta expressão oculta tudo o que se passa precisamente hoje no mundo contemporâneo, isto é, as contradições profundas de interesses, de ideologias e de práticas.
Quando se fala da sociedade internacional, tudo se passa como se todos os interesses fossem convergentes. O próprio termo comunidade é utilizado por numerosos e acreditados autores. E, quando esses mesmos autores analisam o que é essa sociedade internacional, nenhuma alusão se faz realmente aos conflitos que a dividem: contentam-se em falar de fragmentação em coletividades menores ou na formação de blocos (quiçá agora a Comunidade Europeia, Tigres Asiáticos, Nafta, Mercosul, relação sul - sul etc.) nas quais a solidariedade seria mais forte, visto ser esse fenômeno que “explicaria” as relações humanas designadamente no quadro dos Estados.
Os Estados como elementos de base dessa ordem internacional são sempre apresentados apenas sob a sua aparência jurídica; nunca os juristas se preocupam em saber qual o seu conteúdo de classe real. Há Estados, grandes e pequenos, mas sempre definidos da mesma maneira; o resto pertence aos sociólogos ou aos cientistas políticos. Ao darem assim uma imagem mais amável, mais sorridente da sociedade internacional, quer dizer, ao colocarem acento sobre a homogeneidade dessa sociedade, os autores fazem mais do que simplificar a realidade: eles falseiam-na.
Com efeito, deixa de se compreender então como os conflitos podem surgir num mundo aparentemente estável; quando alguns autores consagram um capítulo ao imperialismo, conseguem evitar, do princípio ao fim, uma análise econômica desse fenômeno. Esta visão, quer idealista, quer jurídica, do mundo contemporâneo consagra a idéia de que não há outra organização internacional do que a que se funda em Estados que, para além de todas as disputas, teriam, apesar de tudo, interesses em comuns.
Evita-se indicar o que poderiam ser estes interesses comuns ou os pontos de solidariedade. Talvez o humanismo, a necessidade de um mercado internacional ou o meio ambiente possam servir de explicação. Apenas um lembrete: essa apresentação traz consigo as classificações de Estados então fundados em noções herdadas do século XIX, época em que o eurocentrismo poderia fazer acreditar numa homogeneidade dos Estados.
A atitude abstrata conduz a muitas outras contradições. Assim, da mesma maneira que se pode criticar essa noção de comunidade internacional, é igualmente preciso rever totalmente o conjunto das noções que pareciam as mais seguras. Assim acontece com a definição do costume em direito internacional: chama-se costume a “um conjunto de usos e práticas reconhecido pelos Estados como constituindo, num momento dado, uma regra jurídica” (1).
O que hoje é largamente discutido é o conteúdo do costume em virtude do fato da sua formação. Com efeito, os Estados para os quais esta definição remete são praticamente os Estados europeus, mesmo as antigas grandes potências. Ora, atualmente, um grande número de Estados, antigamente colonizados, não se sente vinculado por usos que foram os dos Estados ex-colonizadores. Não por uma vingança qualquer, mas porque o sistema consuetudinário do direito internacional é não apenas favorável mas também reprodutor das relações de dominação imperialistas.
As afirmações dos juristas que proclamam a existência de “necessidades da sociedade internacional”, necessidades baseadas nas “necessidades humanas”, não são mais do que uma ocultação inábil que os Estados nascidos da descolonização recusam energicamente. Toda a sociedade internacional foi organizada pelos Estados poderosos ocidentais, e a crise econômica atual, tal como as tensões com os Estados produtores de matérias-primas, provam a obrigação de redefinir uma ordem mundial mais equilibrada.
Esta introdução ao direito internacional permite então avaliar a semelhança de situações com a situação interna num Estado: da mesma maneira que o sistema jurídico é a superestrutura que exprime, em geral, a força da classe dominante, assim a organização internacional corresponde, em larga medida, aos interesses dos Estados dominantes, isto é, dos Estados capitalistas.
As coisas são complexas, e por maior razão o serão no ponto internacional. É nesse sentido crítico que poderiam ser desmascarados os obstáculos a um conhecimento mais sério do Direito internacional.
 Referência
(1) REZEK, Francisco. Direito Internacional Publico - Curso Elementar. 14ed., 2013.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

DOCUMENTÁRIO: A SERVIDÃO MODERNA

COMENTÁRIO AO FILME: PRIVATIZAÇÕES - A DISTOPIA DO CAPITAL, DE SILVIO TENDLER.

Resenha do Livro de José Saramago – Todos os Nomes.