Culpabilização das Mulheres Vítimas de Violência. Mesmo após correção do IPEA 58,5% dos brasileiros acham que, “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”.
Temos aqui a vítima - mulher culpabilizada pelo ocorrido, por causa do ambiente frequentado, da roupa que usava, ou do seu comportamento. Isso me fez lembrar o nosso poeta da alma feminina, Chico Buarque:
“(...) Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas.
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas.
Não tem sonhos, só tem presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas, morenas (...)
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas, morenas (...)
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas.
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas.
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas.
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas.
Algumas semanas atrás,
o relatório do Sistema de Indicadores de Percepção Social, do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA, ofereceu evidência de que a sociedade brasileira
tende a culpabilizar as mulheres vítimas de violência. Naquele momento, entre
outros resultados da pesquisa, esta revelou que 58% dos entrevistados, dos
quais 66% eram mulheres, concordaram total ou parcialmente que “se as mulheres
soubessem se comportar mhaveria menos estupros”. E 63% concordaram, total ou
parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos
somente entre membros da família”. Também 89% dos entrevistados tenderam a
concordar que “a roupa suja deve ser lavada em casa”; e 82% que “em briga de
marido e mulher não se mete a colher".
Agora,
alguns dias atrás, o mesmo IPEA fez correções.
Explicou que inverteu os dados, de modo que a estatística deve ser vista assim:
(1)
“Mulheres que usam roupas
que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Na verdade, 26% dos entrevistados
concordaram com a afirmação.
(2)
“Mulher que é agredida e
continua com o parceiro gosta de apanhar”. Com a correção, o número saltou para
65%.
(3)
Houve erros ainda em
outras duas questões: (3.1) com a frase “O que acontece com o casal em casa não
interessa aos outros”, 78,7% concordam total ou parcialmente, e não 81,9%. (3.2)
Já 81,9% concordaram total ou parcialmente com a afirmação “em briga de marido
ou mulher não se mete a colher”, e não 78,7%.
Apesar
das correções do IPEA referente a tolerância social com os atos de violência
contra a mulher, o instituto sustenta que o restante dos resultados permanece
correto, inclusive aquele segundo o qual 58,5% dos brasileiros acham que, “se
as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”.
Concebe-se
a violência contra a mulher como resultado de uma ideologia de dominação
masculina que é produzida e reproduzida tanto por homens como por mulheres. E
mais: considerando que a ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não
como “sujeito”, temos que a mulher não é vista com autonomia, sua liberdade,
sua capacidade de autodeterminação para pensar, querer, agir e sentir é
desconsiderada.
Outra
revelação dessa pesquisa é a indicação que a sociedade brasileira tende a
aceitar o mecanismo de controle do comportamento e do corpo das
mulheres da maneira mais violenta que possa existir. Por trás da afirmação
de que “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”, está a
noção de que os homens não conseguem controlar seu apetite sexual; então, as
mulheres, que os provocam, é que deveriam saber se comportar, e não os
estupradores. Logo, a mulher não é sujeito social! Elas não têm autonomia!
O acesso dos homens aos corpos das mulheres é livre se elas não impuserem
barreiras, como se comportar e se vestir “adequadamente”. O que é “se vestir adequadamente”?
Para
que fique muito evidente: as mulheres estão prejudicadas em seu reconhecimento
de sujeitos porque elas são definidas como “seres para os outros” e não como
“seres com os outros”. Elas são “para o uso do instinto sexual masculino” e até
“para o uso do sonho de consumo masculino”, como se vê nas músicas e cenas que
vulgarizam o papel feminino, nas propagandas de carros, perfumes, bebidas alcoólicas.
Vejam
bem, a violência praticada na mulher parece surgir, também, como uma correção
social. Explica-se: a mulher merece e deve ser estuprada para aprender a se
comportar.
Várias
outras questões podem ser analisadas sobre o suposto acerto de que o estuprador
se baseia só no fato de uma mulher querer ser violentada por usar roupas
ousadas ou no pseudo comportamento inapropriado dela. As perguntas que não se
calam são (feitas por uma internauta que não mais localizo o site):
- Como explicar o
estupro de crianças do sexo feminino?
- Como explicar o
estupro de senhoras idosas?
- Como explicar o
estupro de meninas de pouca idade com uniforme escolar, indo ou voltando
do colégio?
- E as mulheres indo ou
voltando do trabalho, com seus rostos cansados, seus corpos suados e
fatigados, com as vestimentas de um dia inteiro de trabalho?
Portanto,
acredito que a pesquisa revela uma situação bastante pobre de reflexão por
parte da sociedade brasileira, pois creio que não se pode compreender o
fenômeno como algo que acontece fora de uma relação de poder. E considerar as
ações de violência contra a mulher como uma das formas de circulação de poder
na sociedade, significa alterar os termos em que se baseiam as relações
entre homens e mulheres na nossa sociedade. Ou seja, a diferença entre o
feminino e o masculino, o que cada um pode pensar, agir e sentir são transformadas
em desigualdades hierárquicas através de discursos masculinos sobre a
mulher, os quais incidem especificadamente sobre o corpo e comportamento da
mulher.
É necessário discutir como se contrapor à cultura hegemônica de tolerância à
violência contra as mulheres, que não vê a violência como um crime. E mais,
que confere certa legitimidade na “redução da autonomia e da cidadania da
mulher”.
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