Em uma sociedade que tem por regra a desigualdade, o acesso aos bens materiais e culturais reflete muito mais a falta de oportunidades do que a incapacidade.
Quando intelectuais,
imprensa e classe média em geral discutem o acesso aos bens materiais e culturais
falam, quase sempre, da necessidade imperiosa de se implantar uma meritocracia
no país. Afirmam que falta um sistema que privilegie o mérito e as pessoas que
efetivamente trabalham. Ou seja, o vulgarizado ditado popular “se deve ensinar
a pescar e não dá o peixe” vem na ponta da língua.
Em primeiro
lugar, que “o peixe” nunca é
dado. Não se trata de meramente mudar de mãos ou transportar uma riqueza (ainda
que seja a riqueza cultural) de um lado para outro. Não se trata do governo, em
mero voluntarismo, ter a vontade de retirar de quem tem mais para passar a quem
tem menos. Não existe distribuição de renda (ou de riqueza cultural), pois tal
parte do pressuposto que a renda/cultura está disponível, e tudo pode ser
apropriado a “A”, “B” ou Grupo “C”, basta garantir acesso à riqueza cultural...
Ledo engano! A renda e os bens culturais estão apropriados, daí que o correto é
falar em redistribuição, que caracteriza a existência de um conflito social.
Em segundo lugar, que quando tomamos a iniciativa de redistribuir
renda e riqueza cultural, o nosso ponto de partida já não é o “marco inicial”.
Já temos uma história, já existe um caminho anteriormente percorrido. É aqui
que entra a questão sobre igualdade de oportunidades e as políticas afirmativas
(algumas vezes conhecida por uma de suas espécies, as cotas).
Em terceiro
lugar, que se envolveram em um círculo
vicioso, pois retomam o argumento que faz desaparecer as variáveis sociais como
origem, posição social, econômica e poder político. Retornam a meritocracia.
Sem dúvida que há acerto na meritocracia quando ela rejeita o conjunto de
valores que formam privilégios hereditários e corporativos e, ao contrário,
avalia e valoriza independentemente da trajetória familiar e biografia social.
Todavia, a meritocracia refere-se a uma das mais importantes ideologias
modernas, uma vez que é o principal critério de hierarquização social.
Explica-se:
Ao se defender a
proeminência dos melhores, a meritocracia constitui um paradoxo, que muitas
vezes a transforma do tradicional remédio contra os privilégios e discriminação
em critério de discriminação social. É que nos dias atuais, de modo geral, ela
está associada quase que exclusivamente a uma aristocracia de talento, de
intelecto, composta de acadêmicos, produtores de conhecimento, elites
gerenciais, profissionais liberais etc. Ou seja, meritocracia e aristocracia,
de princípio, são elementos antagônicos.
E mais, estamos
diante de uma repaginada do pensamento platônico, que como se sabe, não é lá
muito democrático (para o próprio conceito de democracia da Grécia clássica).
Lógico que não se
trata de uma mera colagem do pensamento platônico aos dias atuais. É pior! Se a
meritocracia é uma conquista do indivíduo moderno desde a revolução francesa
(para termos um marco inicial), a sua versão contemporânea é entubada com a
visão de mundo thatcheriana e reaganiana de combate ao Estado providência e a
atribuição de responsabilidade coletiva pelos destinos dos menos favorecidos,
ao enfatizarem que “o mundo não deve nada a ninguém” e que cada um deve receber
na devida proporção de seu próprio esforço e capacidade. Isto é, pura ideologia
para reafirmar o desempenho como único critério legítimo de ordenação da
sociedade.
O discurso pôs sobre
os ombros dos indivíduos a responsabilidade exclusiva pelos resultados de suas
vidas, ignorando quaisquer outras variáveis, independentemente do contexto.
Considere aqui
que o pressuposto dessa ideologia é que as capacidades são distribuídas
aleatoriamente entre os membros da sociedade. Não existe obra humana que,
previamente, estabeleça, limite, condicione, amplie ou impeça tais
distribuições. Assim, uma vez dada as capacidades e talentos, o indivíduo é
responsável pelo seu ”sucesso” ou “fracasso”. Ocorre que as sociedade hierárquicas
e tradicionais sempre reconheceram “a distribuição aleatória das capacidades”,
sem que isso conduzisse a uma concepção igualitária de sociedade.
Isto faz
lembrar Antônio Cândido “que, envolvendo o problema da desigualdade social e
econômica, está o problema da intercomunicação dos níveis culturais. Nas
sociedades que procuram estabelecer regimes igualitários, o pressuposto é que
todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os níveis
eruditos como conseqüência normal da transformação de estrutura, prevendo-se a
elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição cada vez maior
de conhecimentos e experiências. Nas sociedades que mantêm a desigualdade como
norma, e é o caso da nossa, podem ocorrer movimentos e medidas, de caráter
público ou privado, para diminuir o abismo entre os níveis e fazer chegar ao
povo os produtos eruditos. Mas, repito, tanto num caso quanto no outro está
implícita como questão maior a correlação dos níveis. E aí a experiência mostra
que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade, não a incapacidade”
(1).
(1) CANDIDO, Antônio.
"Direitos humanos e literatura". In FESTER, Antônio Carlos R. (org.)
Direitos humanos e... São Paulo, Brasiliense/Comissão Justiça e Paz de S.
Paulo, 1989. p. 123-124.
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