CARTA PARA HELENA: NÃO ME ENVERGONHO DE VOCÊ SE ENVERGONHAR DE EU SER COMUNISTA. E MINHA FILHA, VOCÊ SABE O QUE É SER COMUNISTA?

Atualmente, ser comunista é um estado de espírito. E para chegar a essa conclusão, que é a realidade quem impõe, é porque Marx nunca teve tanta razão como agora. (José Saramago).


               Não costumo expor minha vida íntima, social, psicológica e afetiva; sequer aos amigos. E nem aqui o faço. Como ocorre com todo e qualquer escritor, o que é escrito já expressa de alguma forma a particular maneira de ser do próprio escritor, ainda que ele não queira ou saiba disso. É esse o limite da minha exposição, que cá para nós e sob certo prisma, é muito maior do que a de qualquer outra pessoa. Por exemplo, enquanto o nú artístico ou pornográfico revela, à primeira vista, a matéria externa do corpo humano que também integra o Mundo Natural, a escrita é eminentemente (e já à primeira vista) a esfera do mundo cultural. Mas trata-se da esfera qualificada, uma vez que desde logo está desnudando a cultura incorporada no indivíduo, exteriorizando-a. Ali exponho o meu exógeno ser nú.
                   Então, vamos ao fato que me leva a escrever uma carta: minha filha Helena me falou no último dia 1º de agosto, que durante a aula de português, não sabe direito como e nem o porquê, o assunto derrapou sobre o que é o comunismo. Tal assunto, em sala de aula nos dias de hoje, só pode ser derrapagem mesmo. Contudo, antes que a professora fosse punida pelo Grupo Abril que recentemente comprou a escola onde minha Helena estuda (Veja aqui, ReVeja aqui) aquela tratou logo de esclarecer, em nova derrapagem, que comunismo “é querer que todos sejam iguais” (sic). E me confidenciou, constrangida, que ficou com vergonha de dizer que o pai é comunista. Ficou com medo “de todos zombarem de mim”. Ou melhor, de mim e dela, como me deixou bastante claro.
                   Tadinha!
                   Confesso que, respectivamente, meu primeiro pensamento e ação foram: ainda bem, senão toda criança que some naquela escola iria sobrar para o pai antropófago e fui logo buscar corrigir o significado de comunismo.
                   Confusão total. Sobre a antropofagia, nenhum problema teria se tal pecado (para os crentes) fosse “sob” as mães ou professoras (sic - para uma linguagem adequada ao Kama Sutra), em minha postura machista e sexista.
                   O problema mesmo houve porque a Helena não aceitou nenhuma correção, ajuste, complemento, aditivo, ou seja lá o eufemismo que criei para amparar a imprescindível necessidade de esclarecer o que é o comunismo. A minha contribuição escolar era sempre interrompida pelo obstáculo do argumento de autoridade, que em tão pouco tempo de escolaridade, apenas seis anos, já se faz tão malsinadamente presente: “Pai! A professora foi quem falou.” Ou ainda, “Ela leu do dicionário”.
                   Ai, Ai, Ai! Como ainda tenho tanto desejo, capricho, e o dever de continuar contribuindo para a formação da Helena. O exemplo está posto: uma professora de português do sexto ano e até o mais simples dos dicionários estão carregados de ideologia.
                   “Se você abrir o dicionário Aurélio ele define comunista como ‘sectário do comunismo’, define comunismo como ‘qualquer sistema econômico e social baseado na propriedade coletiva’, o que é no mínimo impreciso e no máximo uma deformação; não apenas uma deformação em relação a Marx, mas também em relação a regimes como o do genocida Pol Pot, no Cambodja, que se proclamava comunista e que tinha como base a propriedade coletiva (na verdade, dirigida por uma camarilha burocrática, tipo Stalin, que nada tem a ver com a ideia comunista). Mészáros cita o exemplo de um dicionário inglês, para nada de isento de ideologia, que define ‘revolucionário’ como ‘extremista, enfurecido, fanático, ultra radical’, enfim, como caso de polícia” (DANTAS, G. ; TUPINAMBÁ, M. et.al. Brevíssima introdução à sociologia crítica. São Paulo: Edições Centelha Cultural/ISKRA).
                   Pois bem, colocando o assunto no caminho sem derrapagem, vamos à carta:

Querida Helena,
                   Sim, teu pai é comunista. E não me chateio nem um pouco de você ter ficado com vergonha de dizer que teu pai é comunista em sala de aula. Foi você quem me contou, na primeira oportunidade em que nos encontramos após o ocorrido. Ou seja, eu não fiquei sabendo por outros ou porque a gente, que é pai, percebe as atitudes dos filhos, tal como, sentir vergonha do próprio pai. Isso significa que:
                   Primeiro. Confiamos um no outro. Você me diz o que sente, independentemente de achar que isso poderia (eventual ou potencialmente) me magoar ou provocar algum castigo. De fato, ainda que tais hipóteses sejam absurdas, imagino que elas sejam corriqueiras no dia-a-dia;
                   Segundo. Você demonstrou que conhece o teu pai, mas do que as importantes facetas afetivas propiciam. Considero que muitas crianças sabem que os pais as amam; a profissão deles; onde eles nasceram; talvez até do que eles gostem; entre outras coisas importantes. E aqui estou sendo condescendente com os pais ausentes ou presentes apenas de “corpo presente”.
                   Pois bem, você tem um reforço insubstituível para o campo da afetividade. Você conhece a história prática-social do teu pai: que ele foi expulso da escola por ser um dos líderes da greve (que, na ironia do destino, a escola se chamava Colégio Capital, lá em Fortaleza); dos estudos; da CEBs; das leituras; das farras carnavalescas; dos avós e tios paternos; da bicicleta; do Chico, o Buarque; do grupo de 12 rapazes medrosos e uma folha de jornal. Ora, muitas crianças não sabem nada dos pais, talvez sequer tenham pensado de maneira séria que eles já foram crianças um dia. Para além de saber da minha história, você sabe como eu me coloco, atualmente, no Mundo em que vivemos.
                   Terceiro. Talvez conscientemente, ou não; talvez por mero ato sem muita racionalidade na compreensão do significado desse ato; talvez ainda por mera inércia; talvez por espírito de sobrevivência nessa infância e adolescência que nos fazem nostálgicos do tempo dos carrinhos de rolimã, você identifica que ser comunista foge do padrão social. É algo que incomoda e que o resultado pode ser, por parte dos outros, de algum tipo de agressão como forma de reagir ao medo, ao estranho, ao diferente. Ou seja, somos uma minoria.
                   Entretanto, não se trata de uma minoria no aspecto que hoje em dia se fala das minorias (negros, mulheres, deficientes, LGTB etc.). Sim, todos de alguma forma somos discriminados. Mas considero que o ponto em comum entre a minoria dos comunistas e as demais minorias é o elemento quantitativo. Explico. O comunista não quer espaço e reconhecimento na sociedade capitalista que se diz pluralista. O comunista não quer apenas que o multiculturalismo seja a regra como reconhecimento das minorias. O comunista não quer políticas afirmativas para o ingresso dessa minoria no corpo social. O comunista que a mudança radical e completa, por isso revolucionária, da sociedade. Nos não queremos reconhecimento, espaço, respeito e igualdade de oportunidades. O comunista, que se faz diferente do reformista, sabe que não existe capitalismo com rosto humano. O Comunista quer... Vamos já chegar lá.
                   Antes preciso te esclarecer uma coisa, afinal uma criança de 10 anos pode pensar que ser comunista é não querer tudo isso para as minorias. Aliás, que ele é contra isso tudo para as minorias (e só uma criança pode pensar assim). Filhinha, nada de maniqueísmo: isso ou aquilo, preto ou branco. Apenas posso te antecipar que o comunista não confunde tática com estratégia. Ou seja, a questão é saber se essas questões paliativas (reconhecimento, respeito, igualdade de oportunidades por meio de políticas afirmativas) é tática para um processo revolucionário ou estratégia... Se aqueles elementos são pontos de trincheiras a serem conquistados para evitar o retrocesso ou ponto de conquista definitivo. Sinto desapontá-la e me mostrar como um insatisfeito, mas tais importantes ações que humanizam o capitalismo não é ponto de chegada, mas, quanto muito, apenas fase instrumental. O objetivo do comunista é a emancipação e transformação dessas minorias em sujeitos sociais, sob o aspecto da classe trabalhadora.
                   De qualquer modo, a partir do momento que você sabe que o comunista é uma minoria, tal já significa que de algum modo você sabe que o comunismo é contra a corrente; contrário à hegemonia posta; contrário ao pensamento único e dominante; que requer coragem porque não será aceito; compreendido; será pseudocobrado (ai quando apareço de carro novo ou anualmente vou a NY, vixe!). No mínimo fica uma impressão de um sujeito que é um porre, porque é ativista maníaco negativo-depressivo raivoso. Aos fascistas (inclusive no campo da esquerda), trata-se de um socialista-caviar. E para causar ambiguidade não só na escrita: isso é bom!
                   Quarto, ao que me parece, a chegada (ainda que antecipada) da idade da criança mais velha e depois da adolescência requer o sentimento de que existe aceitação por parte do grupo e um certo descasamento dos pais. Logo, vou te propiciar ser aceita lá fora e cá dentro, pois assimilo isso com tranquilidade.
                   E mais uma coisa: sim, você pode divergir de mim. Ao supostamente “me esconder”, você “me nega”. Todavia, a negação é desfeita porque você compartilhou comigo essa negação. Com isso, acabamos de negar que “você me esconde ou que me nega”, pois a negação veio à tona. A negação da negação redunda em afirmação! Estamos no positivo, minha filha. Ou melhor, estamos com uma relação positiva.
                   Quinto, não posso exigir que você pense com uma cabeça, cujos pés que a sustenta estejam fora do contexto em que a gente vive. Posso buscar fazer você enxergar as contradições, as ideologias, as opressões e as explorações que a realidade promove. Afinal, jamais posso querer que o teu pensamento viesse do céu para a Terra, senão que é da realidade posta que se formula o pensamento para compreender a realidade e, especialmente, transformá-la. Por saber minimamente a tese do materialismo-histórico de Marx, posso compreendê-la de que nesse solo, sem a pílula vermelha de Orfeu para Neo de Matrix, o misticismo predomina. E este faz você pensar do jeito que pensa, que é igual ao que todo mundo pensa.
                   Uma ligeira observação, o filme Matrix mostra uma única personagem que se arrependeu de conhecer a realidade e busca seu retorno ao mundo da ilusão e da fantasia. Penso que é o inverso, são poucos aqueles que querem sair da zona de conforto, por não darem conta da “claridade que ofusca o real e machuca os olhos”, como diz o famoso Mito da Caverna, que inspirou o filme (como revelam os irmãos escritores). Penso assim porque, no bojo de nossa conversa, você soltou um argumento que já ouvi de inúmeros idiotas bem maiores do que uma menina de 10 anos, ou seja, uma criança de 10 anos pode pensar assim (pois não é idiotice), um adulto não!  É idiotice (no sentido literal e ideológico do Aurélio, ou como os americanos usam “stupid”, portanto, sem baixaria ou termo de baixo calão), qual seja, adultos que pessoalmente me falaram “porque eu quero continuar a comprar calça jeans e entrar em shopping”.
                   Sobre esse argumento, vou me ater a um pouco mais para amparar a pergunta e a resposta em seguida, sobre o que é ser comunista: Como posso exigir que você não pense da maneira como pensou se há poucas dúvidas de que, na atualidade, o conceito predominante na hora de pensar como ordenar as instituições básicas da sociedade seja o liberalismo como sinônimo de capitalismo, ainda que com suas variantes. Alternativas ficam obscurecidas, e só minimamente aparecem com as crises mais agudas do capitalismo.
                   Não vou aqui teorizar sobre o porquê o comunismo é minoria em um Mundo com pensamento único no liberalismo – capitalismo. Posso exemplificar: muitas pessoas se desencantaram com a esquerda a partir dos trágicos resultados do “socialismo real”. Outros repudiam a reflexão ou resistem genuinamente a autocrítica. Também não posso negar que a violência e o dinheiro são utilizados para apaziguar os revoltosos comunistas, especialmente no campo acadêmico; ou são usados para alimentar formas de pensar que sejam menos conflituosas, afinal o comunista tá sempre falando em luta de classe...
                   Bom, sejam quais forem as razões, o certo é que o liberalismo capitalista parece encontrar-se atualmente sem rival. As propostas que oferece, com as diversas matrizes conservadora, moderada ou progressista, esgota todo o panorama de como devemos organizar a sociedade.
                   Você teve, nessa altura da carta, dizer que até agora “nada de pitibiriba (sic) sobre o que é ser comunista”. Você está certa. Se isso não fosse uma carta, mas um trabalho outro qualquer, deveria ser completamente refeito, uma vez que nos primeiros parágrafo e linhas já não disse o objeto do texto. Mas esta carta é para ser guardada e lida em cada nova fase da tua vida, tal como disse quando a entreguei.
                    Pois sim, o senso comum diz que comunista é o adepto do comunismo. Este sempre houve no Mundo. Afirmam alguns que foi precisamente o comunismo (primitivo) o modo inicial de convivência entre os homens. Depois, por circunstâncias que não vêm ao caso, inventou-se a propriedade privada e, nessa base, se constituíram diversas outras formações sociais. Até que, certo dia, um judeu romântico e genial, apavorado com a situação dos trabalhadores de fábrica na Europa da primeira metade do século XIX, redescobriu o comunismo e o revestiu de uma túnica científica. Mas quantas vezes seu nome, Karl Marx, não tem sido invocado em vão! Ele próprio fazia questão de dizer que não era marxista, e chegou a suplicar: “não me citem como às sagradas escrituras”. Elaborou teorias, escreveu panfletos, agitou massas. E nada. Onde menos se esperava, lá longe, nem país antigo, imenso, homens estranhos e torturados inscreveram seu nome em uma bandeira vermelha e partiram para a revolução, que deveria ter sido mundial. A história do comunismo moderno começa em fins do século XIX, nas vastidões da Rússia.
                   Vamos aqui, então, falar de Marx e da Revolução Russa, com o surgimento dos sovietes. Primeiro vamos falar de Marx.
                   Em linhas apertadas e em resumo comprometedor da fidelidade do pensamento de Marx, posso dizer que ele formou suas teses em 3 principais fontes: (1) o socialismo utópico francês e inglês; (2) a economia política clássica inglesa e (3) a filosofia clássica alemã, representadas pela dialética de Hegel e o materialismo de Feurbach.
                   As ideias básicas do marxismo, ou socialismo científico, podem ser esquematizadas assim:
1. na sociedade capitalista as duas classes principais são a burguesia e o proletariado, sendo a primeira exploradora e a segunda explorada;
2. essa exploração tende a aumentar, porque enquanto a riqueza se acumula num polo a miséria se acumula no outro;
3. como consequência, e na medida em que o proletariado adquire consciência de classe e se organiza, faz a revolução, derruba a burguesia e realiza uma revolução igualitária;
4. essa revolução, realizada pelo governo da classe operária, que se torna a forma de uma ditadura do proletariado, expropria a burguesia de todos os seus bens, acaba com as classes sociais e edifica uma sociedade sem classe;
5. essa sociedade sem classe, igualitária, é construída em 2 etapas: a primeira etapa, chamada de socialismo propriamente dito, é a da ditadura do proletariado, onde resta muito da estrutura econômica e social burguesa (moeda, trabalho, assalariado etc.), a segunda etapa é a do comunismo, e aí vigora o lema “de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”. Portanto, é aqui que a tua professora e o dicionário, considerando-os ingênuos, erraram.
                   Helena, agora teu pai vai destacar o soviete. O que é isso? É uma nova forma de organização e agremiação política para fazer a política. Certos resquícios remontam a Comuna de Paris, mas o soviete melhor elaborado surgiu durante a greve geral de outubro na Rússia, em 1905. O primeiro soviete que surgiu foi o de São Petersburgo, sob a vice-presidência de Trotsky.
                   Soviete significa conselhos, ou seja, seriam os conselhos de soldados, de trabalhadores, de camponeses etc. A noção de conselho atualmente e especialmente no Brasil em nada condiz com o conselho (soviete) do comunismo, uma vez que aquele é fundado em hierarquia, sem acesso universal de modo efetivo, sem poder de decisão e caráter obrigacional, quanto muito pode ter caráter deliberativo, sugestivo, indicativo ou homologatório.
                   Todavia, conselho, para o comunista, acentua o significado de “associação” e de “democracia não delegada”. Ou seja, diz sobre um sistema de organização e/ou de representação, definido com base na distribuição e concentração das forças de trabalho nas diversas unidades de produção (fábricas, repartições, oficinas, grupos, campo), capaz de permitir aos trabalhadores o direto exercício de um papel de direção, tanto no sistema econômico como no político. Logo, trata-se de autogoverno dos produtores mediante o sistema de sovietes ou conselhos.
                   É fácil perceber, e talvez seja justamente isso o mais difícil de realizar, que a democracia direta terá a direção da produção e a administração do cotidiano das comunidades locais, até a extinção do Estado, chegado o momento da “plenitude dos tempos”, para usar uma expressão pra lá de romântica.
                   Devo dizer-lhe que ao se fundar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os bolcheviques, capitaneados por Lênin achavam que as repúblicas deviam ter um elevado grau de independência dentro da Federação, podendo mesmo separar-se dela, quando quisessem. Já Stalin, então como Comissário para as Nacionalidades, insistia que elas deviam ter a mera autonomia de províncias, subordinadas à República da Rússia. Lênin morreu. Stálin ficou senhor de todo o poder. Em palavras, a União Soviética permaneceu como Lênin queria; na prática, as repúblicas foram reduzidas a meras províncias subordinadas ao poder central, com sede em Moscou. E o pior, afastou-se de modo violento qualquer tentativa de internacionalizar as revoluções e o comunismo.
                   E não foi só. Stalin e seguidores (inclusive Kurchev) sufocaram a vida política em toda a URSS, de modo que a vida política ficou paralizada nos próprios sovietes. O que ocorreu foi que uma elite da classe operária (falseando os sovietes) era de tempos em tempos convocada a reuniões para aplaudir os discursos dos chefes e votar por unanimidade as resoluções que lhe são apresentadas. Usando as palavras de uma comunista que acertou na visão do quadro, mas errava gravemente em suas táticas e estratégias, Rosa Luxemburgo dizia que se tratava de uma ditadura, mas não do proletariado. Era a ditadura de um punhado de politiqueiros, isto é, uma ditadura no sentido burguês.
                   Para você ter uma ideia do esvaziamento completo dos sovietes, durante o governo de Stalin, o próprio Congresso do Partido Comunista passou mais de 10 anos sem se reunir. Para votar unanimemente as resoluções e aplaudir os discursos, bastavam as reuniões do comitê central.
                   Portanto Helena, a sociedade comunista como representação da junção das teses de Marx com o lema e a prática “Todo Poder aos Sovietes” foi (e é) uma miragem. O que existiu por toda parte foi apenas o socialismo caracterizado pelo monopólio estatal da economia, da política, dos meios de informação e de opinião; pelo totalitarismo, pelas votações unanimes e aplausos dos discursos, da escassez de liberdades individuais, do regime econômico do assalariado, dos privilégios da burocracia.
                   Um regime socialista deveria pressupor o direito de eleger e revogar os dirigentes de uma empresa ou de um país a qualquer momento, via sovietes. Pressupor ainda, a organização em entidades, grupos ou distintos partidos para disputa, no âmbito do que se denomina esquerda. O direito de se deslocar livremente dentro do país, o direito à livre informação por uma imprensa comprometida com a verdade dos fatos e análise, inclusive, de seguir os interesses do Estado ou do partido no poder; o direito de criticar sem ser ameaçado. Enfim, o direito de pensar e de dispor do tempo para a existência emancipada e livre.
                   Creio que preciso concluir esta carta. E para isso também preciso juntar os pontos que foram sendo apresentados para você ir entendendo o que é ser comunista. Então, concluindo.
                   Ser comunista, minha filha, é bater de frente com a forte campanha ideológica acerca da falência do socialismo posta em marcha desde a queda do muro de Berlim e a desintegração da URSS. Note que pensar em uma sociedade diferente do sistema capitalista e do seu sistema pseudodemocrático soa como algo inviável.
                   Ser comunista é perceber que o enfraquecimento da noção de uma alternativa ao sistema capitalista recrudesceu, em todos os setores da sociedade, o individualismo, o ceticismo, o cinismo, a desesperança, a descrença na força das lutas sociais e nas ações coletivas. O sonho, a utopia, e a certeza de que é possível uma cultura diferente, de igualdade, generosidade e solidariedade humana está em baixa neste momento.
                   Você pode me dizer, como por exemplo, que alguns grupos religiosos ou altruístas fazem tais ações e divulgam esses valores. Eu digo que não. A existência deles (sempre bem vindos e livremente deixados a trabalhar) deve ser compreendida como exceção da regra, pois tais grupos fazem isso de modo isolado e por acreditar em um dever, obrigação ou cumprimento de ordem maior do que eles, ou motivações de psique humana. Em outros termos, uma concepção de um ser extramundano (deus, o qual eu prefiro o ET de Spielberg) ou motivacional subjetivo.
                   Não se trata, no mínimo, ainda no próprio campo do sistema capitalista, de reconhecer um sujeito de direito, capaz de ter acesso aos bens por ter tais direitos, mas de receber dádiva. Por melhor que seja a intenção e por mais imediato que seja a necessidade (daí o motivo para deixar tais grupos trabalharem), a caridade não conota uma igualdade de direitos, mas reflete a existência de um desnivelamento social que é apaziguado por ação altruísta e não porque aquele que a recebe é sujeito de direito. Logo, a relação estabelecida não se dá entre iguais, mas entre uma pessoa que se dispõe (por motivos religiosos ou de fórum subjetivo íntimo) a ajudar o outro em situação mais vulnerável, enquanto que a relação deveria ser, aquele ter acesso aos bens e direitos por ser sujeito e não objeto de caridade. Tanto que poderia reivindicar do próprio agente da caridade.
                   Ser comunista é contrariar a tese da inviabilidade de outra sociedade, que não o modelo liberal – capitalista. É olhar a realidade é vê que ela indica a necessidade urgente de um novo tipo de organização social, baseada em valores além do lucro, do acúmulo de fortunas, do consumismo, da irresponsabilidade ambiental.
                   Quando você me diz que quer ir ao shopping e comprar calça jeans, digo para você que é indiscutível (e reconheço) que o sistema capitalista segue, na sua busca por lucro, gerando dinamismo tecnológico e elevação de produtividade. Mas isso beneficia muito poucos! Os limites, as crises e a irracionalidade do capitalismo, especialmente nos aspectos bélicos, sociais e ambientais, batem na porta desesperadamente avisando da chegada do caos (potencialmente).
                   A questão é que a exaustão de uma organização social humana nem sempre leva a formação de outra “mais avançada”, no sentido de ser capaz de solucionar, senão todos, ao menos os problemas centrais que levavam à crise. Não! Ao contrário, pode ser que a exaustão do capitalismo implique a uma desagregação pura e simples, em retrocesso, em barbárie material e moral.
                   Assim, Helena, pelo menos por enquanto, os incríveis avanços tecnológicos na indústria e agricultura, a disponibilidade de uma imensidão de bens e serviços para uma vida de maior conforto e bem-estar, a escolarização em massa, o maior acesso à informação, a urbanização acelerada, entre outras, não têm trazido um maior grau de consciência política transformadora.
                   Ser comunista, então, é acreditar, construir, manter e viabilizar o esforço coletivo consciente, no sentido de que a decadência do capitalismo não implique em retrocesso material e ético.
                   No pequeno vídeo da entrevista de Saramago que te entrego, e que traz uma parte da citação posta como epígrafe nessa carta, ele responde a pergunta: “como você continua comunista após a queda do muro de Berlim e colapso da URSS?” com outra pergunta “como você continua católico após a inquisição?”. Eu, posso também formular uma tese da seguinte forma, após as duas guerras mundiais, que foram guerras por disputa mercadológica entre impérios, em que os dois lados capitalistas foram completamente além da ética. Por um lado, os campos de concentração nazista que não era exclusividade judaica, mas de todo e qualquer opositor ao sistema (comunistas incluídos), homossexuais, ciganos, eslovacos. Pelo outro lado, a necessidade de economizar tempo e dinheiro levou os EUA aos ataques nucleares sobre a população civil japonesa (e não militar. A bomba não foi jogada sequer no palácio real!). Apesar de tudo isso, existe quem se orgulhe do capitalismo.
                   Por sua vez, devo dizer que ao lado do comunismo há violência e isso não significa um pensamento ideológico de “tudo pela paz”. Explico. Na história das sociedades, nenhuma nova classe revolucionária em ascensão abriu ou talvez possa abrir mão de um regime de exceção contra as classes privilegiadas e conservadoras, especialmente porque são essas últimas classes que irão utilizar, em primeiro lugar, a violência contra aqueles que pregam o avanço, a mudança de situação. O próprio liberalismo (e o capitalismo) nasceu jorrando sangue dos pés a cabeça. As declarações de direitos foram escritas com tintas de sangue, pois a burguesia estabeleceu a sua ditadura cortando a cabeça de inúmeros privilegiados da corte real, de monarcas e de súditos fieis ao rei absolutista. Sinto dizer, mas por mais que os comunistas lutem por uma sociedade livre da violência, provavelmente ainda terão de usá-la para defender-se da violenta reação armada das classes exploradoras e opressoras, e do próprio estado.
                   Portanto, de modo direto e simples, ser comunista é saber da necessidade e lutar para viabilizar uma sociedade muito mais racional, mais igual, mais solidária, emancipada, dessa vez muito mais democrática e muito mais livre, pois tal é uma exigência que se coloca como urgente, mais do que nunca.
                   Mil Beijos,
Hélio Rodrigues

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