RESENHA LITERÁRIA: INFIEL – A HISTÓRIA DE UMA MULHER QUE DESAFIOU O ISLÃ, DE AYAAN HIRSI ALI.

COMO SER FIEL À OPRESSÃO E À EXPLORAÇÃO DA MULHER QUANDO SE DESCOBRE QUE O MUNDO É MAIS COMPLEXO DO QUE O MANIQUEÍSMO RELIGIOSO.

A autora cria uma nova e sofisticada culpabilização da mulher pela sua própria condição de oprimida: a imigrante que não assimilar a cultura ocidental e não valorizar a política pública que lhe é  destinada vale menos do que a imigrante que adota a cultura ocidental. E, logicamente,  do que as mulheres que já nasceram nessa cultural. 



I – Introdução: A definição do que se submeterá à crítica.

O livro “Infiel – a história de uma mulher que desafiou o islã”, autobiografia de Ayaan Hirsi Ali, narra a história de uma mulher criada sob as regras religiosas do islã que descobre, por meio de sofrimentos e superações, o que a própria autora designa, por afinidades com a visão de Mundo eurocêntrica, de valores ocidentais.

Com linguagem clara e objetiva, o livro conta a história da vida pessoal da autora, cuja dinâmica dos fatos mantém o leitor preso ao drama. Não se encontra no livro afeição ao modelo narrativo que privilegia a descrição para ambientar a atmosfera subjetiva das personagens. Não se lê aspectos secundários que tornam a narrativa emperrada. Logo, a leitura do livro em questão narra uma história que flui.

Não se irá aqui fazer um resumo do referido livro. Há bons textos disponíveis na rede mundial de computadores que sintetizam a história ali contada. Esta resenha quer, desde logo, submeter à crítica o livro, sobretudo, os ideais e valores do liberalismo adquiridos e defendidos pela autora. Esta manifesta que àqueles ideais e valores expressam para si a dimensão de seu particular renascimento para as luzes contra as trevas da religião islã.  E universaliza a sua experiência como modelo para se levar “luzes e direitos” a todas as mulheres oprimidas e exploradas pelo islã.

Nada obstante, alguns rápidos esclarecimentos: diante do campo ideológico da atual condução dos interesses imperialistas no oriente médio, não se desconsidera o momento em que o livro foi aplaudido e por quem foi aplaudido; o porquê ele entrou na listagem dos livros mais vendidos pela mídia tradicional que, justamente, trabalha no campo ideológico. Ou ainda, como gerou pseudopolêmicas na mais superficial sociologia da Comunidade Europeia que tateia na leviana questão sobre “o que fazer com os imigrantes”.

Ou seja, os não comentários sobre esses e outros pontos decorrentes, não significam desprezo ou reputá-los de menor importância, senão tê-los como pressupostos lógicos e inafastáveis. O recorte que se submete à crítica expressa conteúdo para além do uso político que o livro assumiu – a contragosto ou não da escritora, isso pouco importa.

Com base na autobiografia em comento, é possível (também) debater diversas políticas públicas: de multiculturalismo, inclusão e assimilação cultural; de descolonização de vários países da África; do radicalismo religioso; das manobras politiqueiras e de formalismo jurídico sobre direitos políticos envolvendo “cidadania, nacionalidade, naturalização e condições de elegibilidade” – manobras encontradas no Brasil ou mesmo na Holanda; entre outras questões.

Aliás, o livro permite até que se encontre uma dimensão de leitura de interesse pessoal ou de autoajuda. Na primeira hipótese, expressa a dimensão individual de superação de problemas e de sofrimentos, quiçá como paradigma a outras pessoas. Na segunda, esse suposto paradigma expressa uma dimensão de ideia universal plenamente aceita em todos os tempos e lugares. E o pior, que essa universal aceitação da ideia é neutra, daí a configuração de um dos mais bizarros estilos literários que é o estilo autoajuda.

Em suma, tal como ocorre com todos os bons livros, “Infiel – a história de uma mulher que desafiou o islã” desperta no leitor o interesse por vários assuntos. O livro não limita o pensamento do leitor à própria história da protagonista, muito embora seja a partir dessa história que se pode sentir, pensar e questionar, isto é, com base na história narrada é possível viver o livro tanto na esfera individual do prazer da leitura, como da esfera de cotejá-lo perante a realidade social externa.

II – Desenvolvimento: as ideias e valores do liberalismo adquirido e defendido pela protagonista é limitado e insuficiente para a emancipação feminina.

A mensagem principal da autora é clarividente: o islã é uma religião opressora para as mulheres. Diz o livro que não se trata de uma má ou boa interpretação do livro sagrado da religião em tela, sequer uma contextualização das escrituras ou atualização hermenêutica aos tempos atuais. Em passagem significativa a protagonista, que é autora, diz: “completar”.

Diversas outras transcrições feitas pela autora do Alcorão comprovam o trato como “minus diminuto” da mulher em termos de cidadania, e que podem ser ampliadas para diversas outras religiões, senão todas porque elas exercem a função humana (e nada divina) de controle social.

E isso não é grande surpresa, pois o que está em causa são questões de poder e privilégio, de dominação e subordinação. Quem tem poder jamais deseja ceder a sua posição, especialmente quando, como no caso do poder masculino, se estende à vida quotidiana e familiar e às áreas mais íntimas da individualidade, permitindo que cada homem tenha uma parcela, por muito pequena que seja, dos privilégios da masculinidade em relação ao sexo, afeto, ao corpo e mente da mulher.

É muito acanhado se reformular com novas palavras a tradicional crítica da opressão feminina pelas religiões, tendo como pano de fundo o islã. Aliás, a autora não amplia sua legítima defesa dos direitos das mulheres para além da específica religião expressa no livro (no caso, o islã). Considera-se importante ir além do mundo das ideias que a autora chegou, ainda que se saiba que diversas outras mulheres sequer o alcançaram.

Explica-se: em dado momento da história, o livro mostra que por meio da aquisição de conhecimentos teóricos (estudos em cursos e nas universidades) e do trabalho (ação) na área política, a protagonista passa a expressar o liberalismo como ”verdade” que liberta da opressão da religião. E diz que isso já foi fato na história europeia chamada de renascimento (nas artes) e iluminismo (na filosofia), não tendo alcançado outras zonas do Planeta. A autora não constata o obvio: tal “modo de pensar” não foram universalizantes, porque a sociedade europeia passou a conviver, harmoniosamente, com as ideias religiosas e do iluminismo.

E, por sua vez, ela não questiona o contexto eurocêntrico da sua tese: como se todas as sociedades tivessem que passar pelos mesmos estágios históricos.

O livro propagandeia, sem nenhuma falsidade, as melhorias na posição social das mulheres, diante da sua situação política, jurídica e cívica nas chamadas sociedades ocidentais. Todavia, ele se esquece de neutralizar a ideologia acentuada na falsa representação ocidente versus oriente. Ou seja, o livro levanta a questão: serão as mulheres hoje cidadãs de pleno direito em todos os países do Mundo? A resposta a esta pergunta é extraída do próprio livro: depende. Naqueles países que separaram religião da política sim, pois a grande maioria das mulheres e dos homens participam das eleições dos seus países – sendo a Arábia Saudita ainda uma exceção ali assinalada, entre outros citados pela autora em sua associação ao islã.

Aqui reside uma das mais graves limitações da protagonista. O sufrágio é o símbolo primeiro da cidadania e, se for tomado como medida, o contraste é muito evidente: há um século, as mulheres apenas participavam em três eleitorados nacionais, a saber, na Nova Zelândia, Austrália e Finlândia. Em 2008, o direito ao voto é quase universal. Todavia, o iluminismo propugnado pela autora de separação da religião do Estado reside no século XVII e XVIII, nas chamadas revoluções burguesas.

Portanto, os estudos e as práticas da autora não lhe possibilitaram enxergar o óbvio: entre as bandeiras das revoluções burguesas e os fatos efetivamente ocorridos, conviveu-se perfeitamente bem durante mais de dois séculos o não-voto feminino. E aqueles países já eram considerados Estados Modernos, sobretudo, frente aos “grotões do oriente”.
A autora menciona a imensa dificuldade em fazer reformas que ampliem os direitos das mulheres em países que adotam o islã como religião oficial. Entretanto, diante da sua posição privilegiada de estudiosa sobre o assunto, focada em trabalho direcionado na área, inclusive, enquanto indivíduo que conviveu e foi beneficiada das políticas multiculturais e de migração, é questionável que ela não tenha “visto” que tem sido mais fácil concretizar reformas jurídicas e políticas (embora ainda haja um longo caminho a percorrer) do que mudanças nas práticas sociais, nas crenças e atitudes e nas concepções de masculinidade e feminilidade.
Cite-se como exemplo: a violência é ainda a prerrogativa do jovem do sexo masculino, especialmente quando confrontado com as contradições e os paradoxos do desejo contrariado e da ausência de poder social e pessoal. Indo mais fundo dentro da oficina histórica e cultural da masculinidade, um jovem pode sempre recuperar a última ferramenta da auto‑assertividade masculina: o poder através da violência. Mulheres ensinam isso aos seus filhos, enteados, aos seus homens.
Por sua vez, as concepções de diferenças “naturalmente surgidas” entre homens e mulheres servem para levar as relações de poder no espaço doméstico. E tais relações são culturalmente construídas. Logo, a impressão de naturalidade se dá porque as mulheres, desde há tempos imemoriais, gastam sua vida adulta dedicando-se ao espaço da casa, à criação de filhos, à realização do trabalho doméstico sujo, dando luz e pranteando a morte, alimentando, cozinhando, desfazendo-se das fezes e equivalentes, de forma que a sua atuação política foi mais difícil de ser estruturada, porque muito envolvidas com as exigências da interação imediata. Por outro lado, os homens ficaram mais livres para formar associações. O espaço público, assim, sempre foi primordialmente acessível aos homens na imensa maioria das sociedades. 
E isso diz respeito a um aspecto interessante quando se rompe o limite da proposta da autora a um Estado meramente liberal para avançar em um Estado de Providência (marcante nos países nórdicos), ainda que este tipo de Estado seja liberal. Explico: o trabalho de prestação de cuidados não remunerado efetuado pelas mulheres nas suas casas não é visto como “trabalho” que “contribua” para a cidadania. É porque as mulheres fazem a maior parte deste trabalho que é difícil vê­las como cidadãs que dão o seu contributo da mesma forma que os homens. O seu trabalho não remunerado também afeta a seu contribuição no emprego, tendendo elas muito mais do que os homens que trabalharem em jornada de trabalho parcial (de forma a poderem continuar a desempenhar o trabalho doméstico).

Todavia, o discurso neoliberal de enxugamento da máquina pública, contenção de gastos públicos – que nasceu na Europa em ataque ao Estado Providência, impede qualquer diálogo sobre a inclusão em regime previdenciário (e não assistencial) do trabalho doméstico da mulher.

Arrumando as ideias: a autora é silente acerca de um fato significativo que não poderia ser “desprezado” – para focar em uma relação exclusiva entre islã e opressão feminina, a saber: muito embora a maioria das mulheres nos países brancos e ricos esteja no mercado de trabalho, continuam a ser elas normalmente as responsáveis pelo trabalho doméstico e de prestação de cuidados. E para fins do Estado Providência, o trabalho doméstico é considerado “não trabalho”.

Dessa forma, o uso da religião para “naturalizar” a opressão é nova faceta daquela identificação muito geral das mulheres com o doméstico e dos homens com o público. O vínculo das mulheres com os filhos é “duradouro, consumidor de tempo e emocionalmente submetedor” como nenhuma outra relação humana. São geralmente concebidas como irmãs, esposas ou mães e têm seu status derivado dos seus ciclos vitais e de seus laços com homens específicos. Assim, autoridade do poder doméstico não é fundada na religião islâmica, muito embora esta seja um forte instrumento para elaborar formas de poder e violência construídas socialmente (em nada relacionada com divindade).
O liberalismo vinculado ao século XVII e XVIII da autora omite que as formas de exploração da mulher compõem o substrato material, a base concreta da produção da vida material da sociedade moderna. Devido não só à esfera ideológica, mas também a um cálculo político (subordinado a interesses mais amplos do projeto de dominação, ainda que particularizados e privatizados) tanto sobre a necessidade de sobrevivência, alimentação, povoamento e de reprodução de braços para a dominação e exploração da Natureza. Por conseguinte, a exploração do homem para produção do seu modo de vida foi uma exploração da Natureza, e também dos corpos e das vidas das mulheres
III – Considerações Finais: a nova e sofisticada culpabilização da mulher pela própria condição de oprimida.
Tudo exposto até aqui não é para dizer que o islã é uma religião que não oprime as mulheres. O pressuposto é que toda e qualquer religião é controle social, indevidamente justificado em metafísica de divindade.

O grande equívoco da autora é que ela comete o mesmo erro de tantos outros: é mais fácil ignorar o sofrimento dos outros se eles forem vistos como culpados da sua própria situação. E nesse caso são exaustivos os exemplos da autora em “culpar” os próprios imigrantes por sua condição econômica e social.

Sem perceber, ou descaradamente sabendo - isso pouco importa, a autora diz que pelo fato dos imigrantes não se incorporarem na sociedade holandesa e sequer respeitarem o que aquela sociedade lhes oferece, eles são responsáveis por sua condição. Ela repete sob uma forma mais sofisticada que os imigrantes (não assimilados em nova cultura) são muito diferentes, estranhos ou de uma outra “raça”, salvo se eles se assimilarem na nova cultura.

Evidentemente que ela não usa a expressão menor valor, inferiores ou sub humanos, mas trata-se de um incremento linguístico para manter o fundamento teórico e as práticas sociais da discriminação. E ela sequer se dá conta de que isto permite atribuir pouca ou nenhuma importância ao seu sofrimento e manutenção do preconceito.

Explica-se: o argumento da autora significa dizer que o sofrimento dos imigrantes que adotaram a cultura do país em que eles se refugiaram tem muito mais valor do que o dos imigrantes que permanecem em guetos culturais, especificadamente seguindo a religião do islã.

Acrescente-se que tal sofisticação da autora desempenha um papel igualmente importante no fomento da indiferença, do não multiculturalismo, da não responsabilização em decorrência da colonização, entre outros. As concepções dominantes de “raça” e de “masculinidade” e “feminilidade” cultivam e mantêm a indiferença, apesar de ser isso que a autora condena.

Os diversos exemplos que a autora oferta no livro de que as meninas e mulheres, no islã, valem menos do que os meninos e homens, será transmutada na sua “nova” concepção de que as mulheres “que não adquiriram a cultural ocidental” valem menos do que as “nossas mulheres”, ou “do que aquelas que passaram a viver no contexto da sociedade de cultura ocidental”. E isso, em primeiro lugar, serve também para os homens e, em segundo lugar, é transmitido de múltiplas maneiras pela autora ao culpabilizar as mulheres e homens que se negam a romper com o islã.

Por conseguinte, o limite da autora em identificar, combater e transformar os males da opressão e da exploração feminina reside na sua flagrante incapacidade de submeter à crítica as suas crenças – passadas (islã) e novas (liberalismo).

É muito mais fácil expor os obstáculos à emancipação plena das mulheres escolhendo como “vilão” o controle social instrumentalizado pela religião (especialmente quando já se conta com boa margem de desconhecimento e preconceito para atender ao interesse imperialista), do que dar respostas à questão do que se pode fazer.

Torna-­se extremamente difícil encontrar uma solução enquanto se continuarem a desenvolver políticas de privatização dos problemas sociais, bem como da chamada “guerra ao terrorismo”. Esta última fomenta um tipo de mentalidade semelhante à do período colonial: a posição das mulheres cá dentro pode ser sempre favoravelmente comparada à das mulheres dos países que agora são apresentados como refúgio de “terroristas” e num estádio inferior de civilização. E a autora sequer percebe a contradição do seu discurso. Ela agrava o discurso ao afirmar que aqueles que tiveram a chance de se ocidentalizar e não o fizeram são “menos” do que os ocidentais e os que fizeram a mudança.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

DOCUMENTÁRIO: A SERVIDÃO MODERNA

COMENTÁRIO AO FILME: PRIVATIZAÇÕES - A DISTOPIA DO CAPITAL, DE SILVIO TENDLER.

Resenha do Livro de José Saramago – Todos os Nomes.