FILME TERRA E LIBERDADE: POR QUE OS IDEAIS NÃO SÃO SUFICIENTES PARA GARANTIR A VITÓRIA.

RESUMO: O filme serve para fomentar o seguinte debate, como os ideais incrustados na guerra civil  espanhola foram ineficientes e não se converteram em matérias e estratégias vitoriosas? Afinal, esses ideais foram capazes de mobilizar diversos cidadãos para ir lutar em um país que, na hipótese mediana, era conhecido por meio do mapa escolar, remontando a  história européia do séc. XV e XVI.


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A sinopse do filme diz que em meados dos anos 30, David Carr deixa a cidade de Liverpool, Inglaterra, para lutar por seus ideais na Guerra Civil Espanhola. De fato, é a partir da experiência do personagem David Carr, narrada em um diário encontrado por sua neta após o seu falecimento, que os ideais e a própria Guerra Civil Espanhola são contados no filme. Não me interessa aqui descrever o filme, mas a partir dele comentar ligeiramente alguns aspectos que para nós, que fomos criados no ambiente econômico e moral dos fins do séc. XX de consumismo e individualismo, são difíceis de compreender: como os ideais incrustados nessa guerra civil foram ineficientes e não se converteram em matérias e estratégias vitoriosas? Afinal, esses ideais foram capazes de mobilizar diversos cidadãos para ir lutar em um país que, na hipótese mediana, era conhecido por meio do mapa escolar, remontando a  história européia do séc. XV e XVI.

Em retrospecto, pode parecer surpreendende que a Guerra Civil Espanhola tenha mobilizado instantaneamente a simpatia da esquerda e da direita na Europa e nas Américas, especialmente os intelectuais ocidentais. A Espanha era uma parte periférica da Europa, e sua história estivera persistentemente fora de compasso com o resto do continente, do qual se separa pelas muralhas dos Pirineus. Mantivera-se à parte das guerras européias desde Napoleão, como iria ficar de fora da 2ª Guerra Mundial. Desde o início do séc. XIX, seus assuntos não interessavam aos governos centrais, muito embora os EUA provocou uma breve guerra contra ela em 1898, a fim de roubar-lhe as últimas partes restantes do velho império mundial do séc. XVI: Cuba, Porto Rico e Filipinas[1]. O pior é que, se antes da guerra civil, a Espanha já não tinha importância enquanto país-império, após a vitória de Francisco Franco, ela passou 30 anos em total isolamento.

Todavia, não é por acaso que a política interna da Espanha se tornou o símbolo de uma luta global na década de 30. Sucitou os principais problemas políticos da época: de um lado, democracia e revolução social e do outro um campo supostamente democrático-liberal ora passivo e complacente, ora singularmente rígido de contra-revolução ou reação, inspirados pela burguesia – que se distanciava do pensamento democrático e adotava o fascismo – e pela Igreja Católica – que rejeitava tudo o que acontecera ao mundo desde Martinho Lutero. Portanto, em um primeiro momento, o filme tem o mérito de nós forçar a buscar entender a história da Espanha como reflexo dos conflitos políticos europeus daquela época: os ideais da esquerda, a passividade e hipocrisia das chamadas democracias ocidentais e o surgimento/apogeu do fascismo.

É bom lembrar que os bem-intencionados liberais, anticlericais e maçons ao estilo do séc. XIX dos países latinos, que tomaram o poder dos Bourbons numa revolução pacífica em 1931, não puderam nem conter a fermentação social dos espanhóis pobres, nas cidades e nos campos, nem desativá-la com reformas sociais (basicamente, a reforma agrária em 1932). Em 1933, esses bem-intencionados foram afastados do poder por governos reacionários, cuja política de repressão a agitações e insurreições locais (como a revolta dos mineiros asturianos em 1934) ajudou a aumentar a pressão revolucionária. Nesse estágio, a esquerda espanhola descobriu a Frente Popular do Comintern. A idéia era de que todos os partidos deviam formar uma frente única eleitoral contra a direita. Mesmos os anarquistas se inclinavam a pedir a seus seguidores que praticassem o vício burguês de votar numa eleição, que até então haviam rejeitado como método de revolução. Contudo, destaque-se que nenhum anarquista concorreu às eleições espanholas naquela ano. Em fevereiro de 1936, a Frente Popular obteve a maioria de votos, e graças à sua coordenação, obteve também uma maioria no Parlamento espanhol.

Nesse ponto, tendo falhado a política direitista ortodoxa, a Espanha reverteu a uma fórmula política em que fora pioneira, e que se tornaria típica durante todo o séc. XX: o golpe e a intervenção militar externa.

De fato, como nos conta Hobsbawm (1998, p. 162-163) “(...) na Espanha, essa situação foi responsável pela Guerra Civil, de 1936 a 39, quando um golpe militar, apoiado pelas forças de direita, provocou a divisão do país. O golpe, pretendia eliminar o regime republicano, instituído em 1931, responsável por uma série de reformas que desagradaram os setores mais conservadores do país, uma vez que os interesses de latifundiários e da Igreja Católica foram duramente atingidos. O conflito teve de um lado os republicanos, os grupos de esquerda - comunista e anarquista -, enquanto de outro encontravam-se os grupos fascistas e os setores mais conservadores da cidade. (...)  Enquanto a Alemanha e Itália ajudaram diretamente e imediatamente os fascistas espanhóis, Inglaterra e França adotaram uma hipócrita política de neutralidade, pois a não-ajuda era um favor a Alemanha, a Itália e aos golpistas, e tal inércia era requisito do acordo de não agressão entre Stalin-Churchil-Roosevalt-Hitler. (...) A rigor, os governos da França, da Inglaterra, dos EUA e respectivos países submetidos as suas zonas de influência eram profundamente hostis ao que viam como avanço da revolução social, deitando certa simpatia ao fascismo, senão hitlerista, com certeza próxima de Mussolini. A opinião da classe média e conservadora no ocidente  em geral partilhava dessa atitude. (...) Em fase final, a principal ajuda material foi dada pela União Soviética aos republicanos, todavia pouca e condicionada a um enquadramento do partidos de esquerda ao stalinismo, que não buscava ampliar os seus espaços e zonas de influência, uma vez que acordou com as principais nações capitalistas o pacto de não ampliação do bolchevismo”.

Assim, a partir do destaque do filme à Guerra Civil espanhola é oportuno perceber que o processo eleitoral só é aceito quando e se nenhuma mudança social profunda é realizada, inclusive, capaz de inverter a democracia-economia, possibilitando que a maioria, de fato, possa gerir os rumos e a riqueza do país. O discurso ideológico que busca desesperadamente associar capitalismo, liberalismo e democracia desmorona-se com os fatos históricos, pois golpes foram dados em todas as frustradas “revoluções nacionais” do séc. XX que buscaram o poder por meio de processo eleitoral através de frentes populares. O discurso de respeito às regras constitucionais e ao Estado de direito é vazio, e serve apenas para impedir mudanças que alterem o quadro sócio-econômico[2]. Exemplo notório ao lado do caso espanhol é o período das ditaduras militares na América Latina, tal como ocorrido no Chile em 1973[3], ou em países europeus periféricos, como Portugal, Grécia e Áustria.

Por sua vez, quando internamente o golpe não pode ser dado, a intervenção militar externa é o instrumento contra-revolucionário, tais como são apenas exemplos as guerras imperialistas do séc. XX, seja na Ásia (Correia, Vietña, Filipinas, Bangladesh, Indonésia, Timor etc), no Oriente Médio (Irã em 1941, Iraque em 1958, Egito em 1970, Iêmem em 1962, Líbia em 1969 etc) ou na África (Argélia em 1965, Congo em 1965, Etiopia em 1974, Guiné em 1984, Níger em 1974, Nigéria em 1966, Sudão em 1958 e 1969, Serra Leoa em 1992 e Somália em 1969).   

O golpe é sempre precedido de contra-informações falsas sobre as reformas sociais (como supostos ataques às casas e moradias, canibalismo infantil, ateísmo, desfazimento cultural, desrespeito à democracia, populismo  etc) e respectiva plantaforma política, econômica e social, além dos ataques morais à pessoa do governante de plantão, que geralmente fraco em caminhar para a revolução e entrelaçado por acordos com a burguesia, possibilita a construção do golpe e a reação dos golpistas. Aqui não fazemos mais do que destacar o recente papel dos privados e restritos veículos de comunicação e os ataques aos governos que, em última análise, são de matrizes liberais, tais como Lula, Chavez, Morales, Kirncher, Zelaya etc. Portanto, sem maiores análises – como é imprescindível – não se está a apoiar tais governos, apenas a repudiar críticas de classe e reacionárias, inclusive, assentadas em falso moralismo.

Vale ressaltar que o efeito imediato do golpismo e da intervenção militar externa visando barrar reformas sociais oriundas de frentes populares eleitorais é encarar a história social não por meio dos discursos ideológicos que associa o capitalismo à democracia. Ou ainda, a suposta história linear de evolução gradativa de direitos e conquistas sociais e políticas. Nada mais contrário a história do que pensá-la em termos de progresso ou evolução (BERMAN, 1996; FOUCAULT, 2000; SANTOS, 2005). Ora, há retrocessos sociais, políticos e humanitários. A história dá inúmeras exemplos disso, tais como, os golpes e os períodos absolutistas na França após a revolução francesa de 1789; o esfacelamento dos direitos sociais e o desmantelamento dos instrumentos estatais de efetivação daqueles direitos decorrentes da hegemonia das idéias neoliberais; ou ainda, o estrangulamento das convenções internacionais nas recentes guerras EUA x Afeganistão e Iraque, promovidas pelo governo W. Bush e mantida, intocável, pelo atual presidente Barack Obama.

Hoje em dia, nenhum intelectual é levado a sério se ele acreditar em evolução ou progresso social, como se a sociedade tivesse uma finalidade e caminhasse, necessariamente, sempre para atingir tal fim. Se a historiografia nega essa pretensão idílica da sociedade humana, por que os cientistas políticos e alguns poucos ramos da sociologia acreditam nela? E o pior, por que tal insubstantiva tese prevalece no senso-comum?

A resposta parcial a tais indagações também são encontradas no filme, quando o personagem David Carr, até então convicto nas certezas do partido comunista stalinista, percebe o desvio de foco, pois o partido transformou-se na força que mais tendia à divisão da esquerda, concentrando seu fogo não contra o inimigo óbvio, mas contra o competidor potencial mais próximo. A mudança desses sistemáticos e eficientes defensores da unidade antifascita foi precedida de campanhas difamatórias e caluniosas, inclusive, que perpetuaram-se com a adoção de métodos de sequestros e assassinatos de outros líderes.

Para finalizar, é importante responder de modo direto a indagação formulada no começo do texto, repita-se, “como os ideais incrustados nessa guerra civil foram ineficientes e não se converteram em matérias e estratégias vitoriosas?” Para tanto, adotamos a tradicional visão sobre a guerra civil espanhola no sentido de dizer que a República espanhola, apesar das simpatias e da ineficiente ajuda recebida, travou uma ação de retarguarda contra a derrota desde o início. Em retrospecto, fica claro que isso se deveu à sua própria fraqueza. Pelos padrões das guerras do séc. XX, ganhas ou perdidas, a guerra republicana de 1936-39, com todo o seu heroísmo, teve um desempenho ruim, em parte porque não usou seriamente aquela poderosa arma contra forças convencionais, a guerrilha – uma estranha omissão num país que deu nome a essa forma de guerra não convencional. Ao contrário dos golpistas, que tinham uma direção militar e política única, os republicanos continuaram politicamente divididos, e não conseguiram formar uma vontade militar e um comando estratégico únicos, ou só mais tarde. O melhor que podia fazer era de tempos em tempos repelir ofensivas potencialmente fatais do outro lado, prolongando assim uma guerra que podia muito bem ter terminado em novembro de 1936 com a tomada de Madri.

Todavia, ao lado dessa compreensão, o filme terra e liberdade sobre a guerra civil espanhola bem retrata o porquê da interminável e desmoralizante queda da esquerda era ineficientemente detida por homens e mulheres que combatiam o avanço da direita, tal se repetindo de modo sistemático durante todo o séc. XX: os partidos alinhados ao stalinismo mantiveram a política escolhida de estudada moderação para não pôr em perigo suas relações com o capital. O inimigo não era o capital – sendo que para o 3º Mundo até onde ele existia – mas o pré-capitalismo, os interesses locais e o imperialismo americano que os apoiava. O caminho não era de luta, mas uma ampla frente popular, ou nacional, da qual era aliada a burguesia ou a pequeno-burguesia nacional. Em suma, a estratégia stalinista para todos os países do 3º Mundo continuava a linha do Comintern da década de 30 experimentada na Espanha, contra todas as denúncias de traição da causa revolucionária. Essa estratégia às vezes pareceu dar certo, mas um olhar profundo no séc. XX nesse começo de séc. XXI possibilita perceber que talvez, não surpreendentemente, quando se chegou a esse ponto, ela foi detida de chofre por golpes, intervenções externas, seguidos de terror, com clara intervenção dos países capitalistas centrais e anuência concreta da extinta URSS.

    
Referências:

BERMAN, Harold J. La Formación de La tradición Jurídica de Occidente. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. (introdução, cap. 4 e 6)
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 23 ed. Petropólis: Vozes, 2000.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
______. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
SANTOS, Boaventura S. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005.

(*) Publicado originalmente na revista contra a corrente, nº 2, ano II.

[1] A Espanha manteve sua presença em Marrocos, disputado pelas aguerridas tribos, e também em alguns territórios africanos mais ao sul, esquecidos por todos.
[2] Sem maiores detalhamentos, pois escapa ao foco desse texto, observa-se que o discurso de respeito ao Estado de direito no Brasil nos dias atuais tem servido, como por exemplo, para impedir tanto o uso de algemas em alguns poucos ricos como a reforma agrária, além de criminalizar os movimentos sociais e desqualificar os jornalistas em benefício dos proprietários dos veículos de comunicação social. A esse respeito vide Boaventura Sousa Santos, Agência Carta Maior In: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4493 Acesso:02.jan.2010.

[3] Não necessariamente formaram uma oficial frente popular como no Chile, mas tal como na Espanha, forças de esquerda aderiram aos governos liberais que propunham alguma reforma social sem alteração do sistema social e, ainda assim, foram golpeados: Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, República Dominicana, El Salvador, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

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