50 TONS DE MEDIOCRIDADE: COMO NÃO ENTENDER A AUTONOMIA SEXUAL E PERMANECER NO MUNDO DOS PADRÕES SEXUAIS.
Resumo: “Cinquenta Tons de Cinza” é um sucesso de
bilheteria, quem sabe porque buscamos mais do que representação, focalizada, de
sexo na tela (rs!), além dos gemidos e penetrações sem rostos e emoções. Mas o
livro e o filme não conseguiram entregar o que buscamos. A incapacidade de sair
do lugar comum e pensar o nosso Mundo sexual de modo mais transparente e aberto,
torna enredo sexista. E tudo é vendido como romance.
(Atenção, há spoiler nos comentários abaixo).
1. A Ida ao Cinema:
Confesso que não tinha lido os livros dos “Cinquenta
Tons”. Até tentei, quando me falaram que ajudaria no casamento... Mas após os
três capítulos iniciais, a má escrita e o enredo enfadonho, eu encontre dificuldade
em continuar a leitura. Quem sabe seja o preço que pago, atualmente, da separação. Eu considerei que a culpa (sempre
ela!), era minha já que o livro tem mais de 100 milhões de cópias vendidas. Mas
era só esperar pelo filme, pois Hollywood não iria desperdiçar esse nicho.
O filme é altamente tolo, assustador, pertubador e, nos
créditos finais das letras com nomes dos trabalhadores, altamente sexy.
Contudo, neste final de semana aceitei o convite para vê-lo. E sem nenhum
comentário, fingindo hipocritamente me sê-lo indiferente, fui.
Enfrentei uma fila (ainda) imensa na bilheteria do
cinema, formada basicamente por mulheres de meia idade [como se eu soubesse o
que é idade inteira!?] ou adolescentes. Sempre mais casais do que grupos.
Somente agora percebo que essa minha tendência de observar, em detrimento de
conversar, incomodou a minha breve companhia. Pois depois do ocorrido (ou do
não ocorrido), creio que não nos veremos. Certo, pois meu "couro grosso de
cearense" não dá para chicotes. Mas vamos ao filme.
2. O Filme:
Para quem é meio ermitão – como eu sou, um resumo do
enredo: estudante universitária, virgem, tímida, “convencionalmente” atraente e
que as vezes usa roupa de flanela [sabe-se lá porquê o filme chama atenção
disso], chamada Ana, atende ao bilionário Christian Grey, que é CEO de uma
grande empresa que esqueci o nome [ou o filme sequer fala, agora não me
lembro].
Ela se apaixona instantaneamente por ele por causa de...
bem, razões de algum tipo... e começa uma relação com ele de BDSM (bondage,
dominação, sadismo e masoquismo), mesmo que ela não seja sexualmente
experiente.
... Calma, eu acredito que o pior seguirá nos três longos
livros para esse enredo...Vamos continuar...
Ah! No filme ela é amiga e divide o apartamento com uma
colega que é “Hollywood Hot” – loira, seios grandes e sexualmente aventureira.
Imagino que tal personagem seja para útil contraste e simplificação do enredo.
Não vi outra utilidade para a “amiga de quarto”.
Christian é “super hot”, como todo mundo no filme
constantemente nos lembra... Mas o ator (Jamie Dornan) é bastante sem graça,
além de conformidade com certo spornosexual ideal.
Fraco na atuação como um caldo de galinha ralo para enfermos do aparelho
digestivo.
Eles têm um “adorável e engraçado” encontro no
escritório de Christian. [como houve risadas e comentários no cinema, resolvi
colocar tais adjetivos. Mas eu não entendi e apenas acompanhei a manada]. O
escritório é composto inteiramente por jovens e mulheres quentes, que assistem Ana
tropeçar na porta do escritório e conhecer Christian sobre os joelhos. [Entendeu?
Depois me explica, por -favor!]
Ana diz que Christian é intimidador, muito embora não
seja muito claro o que é essa intimidação em sua primeira reunião, além do local
e mobiliário de escritório que custa tanto quanto uma pequena casa – na
avaliação da personagem...
Grande parte do filme é uma dança curiosa entre
cavalaria e fluência de zumbis. Christian opera de dois modos: busca ocupar a
atenção de Ana nos locais que ela frequenta e naquelas datas que lhe envolvem,
e busca voar e dirigir máquinas caras!
Ele rouba seu endereço e envia presentes caros para a
casa dela. Ele mostra-se no local de trabalho de Ana; em um bar (ele não
tem como saber que ela estaria nesse bar! Isso é posto como um imenso drama no
filme... Ele intervém contra um amigo de Ana bêbado, que está tentando beijá-la
depois que ela diz que não); e eventualmente, em seu apartamento.
Não consegui entender: ele, rotineiramente, faz essas
coisas depois que ela rejeita seus avanços. E ele “avança” para “controlar Ana”
aparentemente para dizer coisas do tipo: "Fique longe de mim” ou “Eu sou
perigoso".
Mas enquanto Ana segue, às vezes, essas
“instruções”, ela é rapidamente envolvida pela gostosura do poder da vida
burguesa e da força industrial. Sua carência por livro de histórias românticas [e
aqui é preciso entender o que o filme chama de história romântica], é cumprida
por Christian, não importa o quão mal adaptado...
3. Comentários ao Filme:
Se a popularidade de “50 Tons de Cinza” revela alguma
coisa, é a profunda fome de representações – quaisquer representações – do
prazer sexual feminino fora do quadro de pornografia destinada a homens
heterossexuais.
Considerando nossos padrões puritanos sobre nudez e
sexo, e, particularmente, sobre a imagem que construímos de mulheres que
apreciam o sexo, o filme não se afasta muito desses padrões e preconceitos.
Aliás, particularmente, em apenas
uma cena encontrei uma autonomia sexual favorável à mulher. Trata-se da cena em
que a protagonista Ana negocia as cláusulas do seu contrato. Ali há uma tensão
sexual mais atraente do que a maioria das cenas de sexo reais contidas no filme. A
cena é notável porque é uma das poucas vezes que Ana e Christian realmente se
sentem como iguais e, por isso, envolvidos em um jogo que eles estão (ambos)
desfrutando.
Mas sempre que o filme tenta se
aproximar BDSM – que supostamente é o núcleo de seu apelo –, nos deparamos com
problemas graves. Fiquei sabendo pela minha companhia de ida ao ciname,
que Christian sente a necessidade de dominar as mulheres porque ele foi abusado
quando criança. Então, imediatamente, o BDSM é enquadrado como dano, algo
estranho e errado. Não é algo que uma pessoa normal, saudável psicologicamente
jamais deseja ou quer desfrutar.
Quando Christian mostra Ana sua excepcional sala
de jogos bem equipado [a sério, quantas camas que uma pessoa precisa para fazer
sexo?], e explica que ele gostaria que ela fosse sua subalterna em tempo
integral, ela inicialmente recua. Quando ele explica as várias maneiras
que gostaria de machucá-la, ela diz algo assim: “Por que alguém iria deixá-lo
fazer isso?”.
Para as pessoas que são atraídas para
sexo pervertido (seja lá o que isso significa!), a resposta óbvia é: “Porque
você gosta.”. A resposta de Christian? “Porque isso me agrada.”. “E
o que eu ganho em troca” – pergunta Ana... Ana pede. "Me, responde
Christian?”.
Por essa lógica, Ana deverá realizar
os desejos de Christian não porque ela gosta de submissão, sujeição ou dor, mas
porque ela o ama. E é exatamente isso o que acontece no clímax do filme:
Ana permite Christian espancá-la com um cinto, embora ela claramente não esteja
gostando. Aliás, está chorando de dor! Ela faz alguma coisa que claramente não
quer fazer, porque ela quer que ele a ame...
... Christian continua machucando Ana, mesmo quando ela
está chorando... Não sou nem um pouco conhecedor do sexo BDSM, mas isso
não é sexo. É abuso!
É claro que os cineastas, atores e espectadores
sabem esta cena é perturbadora. Mas isso é exatamente o problema do filme. Estamos
todos muito bem e “de acordo” no território de alguns tipos de bondage e com
certa luz de flagelação. Mas, quando se trata das questões profundas sobre
tabu do sexo feminino, autonomia sexual e gosto... a imaginação do filme falha
gravemente.
Por que achamos dor erótico? Por
que gostamos de cenários de RPG que nunca queremos experimentar na vida real, senão
sob a forma consensual, mas tendo que fingir ser “não consensual”? O que é
atraente sobre o jogo com o poder? Por que nós gostamos dessas coisas que gostamos,
mas nosso padrão e conceitos afirmam que não é para gostar, e o que isso diz
sobre nós e nossos desejos?
A incapacidade de sequer conceber respostas a estas
perguntas é o que faz o filme ficar longe do núcleo que ele quer tratar... e
justamente quando as coisas começam a ficar interessantes.
O filme me disse o seguinte: Não é
possível conceituar uma relação BDSM verdadeira e mutuamente consensual e
agradável... Mas o que é o sexo tipo BDSM? O filme acaba no lugar comum por
onde ele começou. O filme é contrário ao sexo e profundamente sexista. Por um
lado, Christian é um abusador danificado por uma necessidade patológica de
controlar e ferir mulheres. Pelo outro lado, Ana coloca-se junto dele por mais
dois livros [ninguém merece!] e, por isso, em dois outros filmes (Ah! Como
aquentar?!), porque ela quer salvá-lo, e toda a coisa é vendida como romance. Isso
não é sexy. É tóxico! É medíocre sobre as questões que envolvem o nosso
Mundo sexual.
Referência:
Cinquenta Tons de Cinza. Dirigido por Sam Taylor-Johnson,
com base no romance de EL James, estrelado por Dakota Johnson e Jamie Dornan. Clique aqui
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