O Poder Judiciário, a Política e as Relações Sociais
O texto de José Reinaldo de Lima Lopes, publicado na Folha de São Paulo (revista Ilustríssima, em 05/03/2017), vide link abaixo, sugere que o Poder Judiciário não se vem pondo
como obstáculo a uma “atualização” das relações entre Estado e a sociedade,
obrigando-o, porém, a obedecer a um ritmo de transição (e não à lógica da
ruptura, até porque não é possível uma hipervalorização do Judiciário como
vanguarda. Jamais!), o que o leva à preservação da tradicional influência da
esfera pública na configuração do país.
Bem e mais interessante seria avaliar “a qualidade” dessa
“atualização das relações entre Estado e a sociedade”, especialmente em tempos
de aproximação com o fascismo da classe média burguesa, seja aqui com Bolsonaro
e com valorização dos aparelhos e condutas repressoras; seja acolá via Trump,
Brexit, Macri, e Le Pen.
E novamente uma completa ausência de crítica a “suposta mudança
pelo alto”, sem significar a abertura (participação) da democracia política no
sentido de democracia organizada de massas.
Link:O Supremo e as crises da República
O Supremo e as crises da República
José Reinaldo de Lima Lopes
RESUMO Instância máxima da Justiça
brasileira, o Supremo Tribunal Federal foi criado em 1891 e pouco mudou desde
então. Se o número de ministros oscilou, o papel de guardião das leis do país
se mantém. Autor lembra que a corte é acusada de judicializar a política há
décadas e mostra como ela se abriu à pauta da sociedade civil.
O atual protagonismo do STF (Supremo Tribunal Federal) nos
conflitos institucionais sem dúvida tem características particulares, mas foi
precedido de outros períodos em que a mesma corte viu-se envolvida em episódios
marcantes.
A
despeito disso, como lembra o título do livro de Aliomar Baleeiro, ministro do
STF nos anos da ditadura, o Supremo ainda é "esse desconhecido".
Pouco se publicou sobre sua história, e seus antigos acórdãos continuam
praticamente ignorados.
Será
que cada uma das sete Constituições republicanas alterou tanto o STF a ponto de
não haver linha de identidade entre os diferentes momentos da trajetória
iniciada em 1891?
É
verdade que houve mudanças formais. No começo, o plenário da corte era composto
por 15 ministros, número que depois passou a 11, subiu para 16 e voltou a 11. O
modo de escolha, porém, permaneceu o mesmo. Durante a constituinte de 1891,
discutiu-se a forma de nomeação dos ministros: pelo presidente da República,
via eleição no Congresso ou mediante acordo entre Executivo e Legislativo.
Prevaleceu o regime que se mantém até hoje: indicação pelo presidente e
confirmação pelo Senado. Abandonou-se, assim, o sistema que existira no
Império. Durante a monarquia, chegavam à corte suprema apenas os juízes de
carreira, designados por ordem de antiguidade.
Com
a nova regra, alguns ministros foram pescados no meio acadêmico e se
destacaram, como Pedro Lessa e João Mendes, professores da Faculdade de Direito
de São Paulo, hoje da USP. Outros foram chamados após terem ocupado cargos no
Poder Executivo, como Alberto Torres, ministro da Justiça de Prudente de
Morais, Epitácio Pessoa, ministro da Justiça de Campos Sales, e Carlos
Maximiliano, consultor-geral da República sob Getúlio Vargas, sem falar nos
casos recentes que todos conhecem. Entre os nomeados devido a serviços
prestados ao governo, houve juristas menores e juristas maiores, cujas decisões
ainda vale a pena ler.
Mais
importante do que discutir a composição do tribunal, contudo, é analisar seu
papel no sistema político. Quanto a isso, desde que foi criado, sua função
principal manteve-se a mesma: ser o guardião da Constituição. No Império, a
corte mais elevada, o Supremo Tribunal de Justiça, julgava apenas "segundo
a lei"; na República, transformado em Supremo Tribunal Federal, passou a
"julgar a própria lei", segundo disse João Barbalho, primeiro
comentador da Constituição de 1891.
POLÍTICA
Não
surpreende, pois, que o STF sempre tenha se envolvido em muitas questões
políticas.
Durante
o governo de Floriano Peixoto (1891-1894), teve de fixar os limites do Poder
Executivo no estado de sítio. Em 1912, interveio num conflito eleitoral da
Bahia, quando um juiz federal mandara bombardear Salvador para que o prédio da
Assembleia Legislativa fosse desocupado.
Nos
anos seguintes, foi chamado a deliberar a respeito de conflitos sobre limites
entre Estados da Federação e concedeu ordens para que se realizassem comícios
eleitorais ou reuniões religiosas quando as polícias, por ordem dos
governadores, tentavam impedir esse tipo de manifestação.
Durante
a ditadura Vargas (1937-1945) e durante a ditadura militar (1964-1985), ficou
silenciado, mas, a partir da Constituição de 1946, julgou desde a cassação do
Partido Comunista Brasileiro até a aplicação da Lei de Segurança Nacional.
Recentemente, examinou a validade da Lei de Anistia, de 1979, e os planos de
reforma monetária, entre 1986 e 1994.
Em
resumo, o Supremo sempre se envolveu em questões de inegável impacto ou efeito
político. Dito de outra forma, sempre houve judicialização da política –ou,
pelo menos, acusações de judicialização da política.
Não
por acaso, os primeiros intérpretes da Constituição de 1891, Pedro Lessa, João
Barbalho e Rui Barbosa, frisaram a distinção entre decisões com efeitos
políticos e decisões eminentemente políticas.
As
primeiras são inevitáveis quando se dá a um tribunal poder para verificar os
atos produzidos pelos outros Poderes. As segundas são –ou deveriam ser– típicas
dos poderes políticos, pois decorrem de um juízo de conveniência fundado em
critérios discricionários, como a declaração de guerra ou a aceitação de um
embaixador estrangeiro.
Os
doutrinadores, já naquela época, aconselhavam aos juízes constitucionais certa
moderação, exatamente porque seus atos seriam inapeláveis. Assim, dizia-se,
deveria ser presumida a validade da lei, não sua invalidade.
Tal
conselho ajudava os ministros do STF a conterem seus gestos no papel de guardas
da Constituição, mas não tocava em outro problema: a capacidade da corte de
orientar a aplicação do direito pelos outros tribunais.
Nos
Estados Unidos, por exemplo, não há maiores dificuldades. Como o Judiciário
americano funciona no sistema da "common law", os tribunais seguem a
interpretação das cortes superiores como se fosse lei. É o que se chama
precedente. Quando se quer saber o que diz a Constituição dos EUA, procura-se a
série de decisões tomadas pela Suprema Corte sobre o assunto, não apenas o
texto legislativo ou os livros de direito constitucional.
Esse
processo funciona de outro modo no sistema brasileiro. Considera-se que os
juízes e os tribunais sempre podem interpretar a lei (e a Constituição) no caso
concreto.
Além
disso, no sistema norte-americano, justamente porque a decisão vale como
precedente, é importante que ela tenha uma argumentação clara –seus fundamentos
poderão ser usados em casos semelhantes.
No Brasil, chega-se ao cúmulo de o STF decidir de forma unânime –ou seja, todos os ministros votam no mesmo sentido–, mas com 11 razões diferentes. Como tirar daí uma regra, um precedente, um fundamento a ser utilizado no futuro?
No Brasil, chega-se ao cúmulo de o STF decidir de forma unânime –ou seja, todos os ministros votam no mesmo sentido–, mas com 11 razões diferentes. Como tirar daí uma regra, um precedente, um fundamento a ser utilizado no futuro?
Um
exemplo dessa falta de orientação está na "guerra de liminares": um
juiz decide uma questão sozinho, antes de a defesa se manifestar e antes de
haver produção de provas. No dia seguinte, sua decisão é revogada por um juiz
superior. Num terceiro dia, um terceiro juiz desfaz a decisão do segundo.
Como
pode?, pergunta-se o cidadão confuso. Será que os juízes têm critérios? Ou será
que se sentem pressionados pelos meios de comunicação, pela opinião pública,
talvez por um desejo de celebridade? Estão nossos tribunais e, acima deles,
nosso Supremo Tribunal Federal, preocupados com isso?
Ora,
o tempo da Justiça não é o tempo das redes sociais. Um saudoso processualista
brasileiro, Botelho de Mesquita, dizia que certos juristas e juízes resolveram
acelerar o processo judicial sacrificando o direito de defesa. Os tribunais não
podem embarcar na velocidade do Twitter, mesmo que devam prestar justiça
rapidamente. Não podem, com as decisões singulares e de urgência, criar fatos
consumados em prejuízo do direito das partes. Isso vale para todos os
magistrados, da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal.
Claro
que o STF de hoje atua numa sociedade mudada. O Brasil se tornou uma democracia
de massas ao longo do século 20. O direito de votar, por exemplo, foi estendido
às mulheres em 1932 e aos analfabetos em 1988. Também foram incluídos os interesses
estruturados por partidos políticos, por sindicatos e pelas chamadas
organizações da sociedade civil.
PARTICIPAÇÃO
Ao
lado disso, abriram-se mais canais de participação. Se até meados da década de
1960 debates constitucionais se iniciavam no STF apenas a partir de casos
individuais e por alegação das partes, uma emenda constitucional de 1965
permitiu que o procurador-geral da República questionasse diretamente perante o
STF a constitucionalidade de uma lei.
Quando
essa possibilidade foi franqueada a diversos outros atores, com a Constituição
de 1988, revelaram-se inúmeras demandas antes reprimidas. Muitos conflitos que
nem chegavam ao Congresso puderam ser expostos publicamente diante de nossa
corte suprema.
A
espécie de disputa que agora se apresenta em público, portanto, tem a ver com
esses grupos que antes não conseguiam se fazer ouvir.
Em
meio a essa onda democratizante também surgem conflitos que não se resolvem
devido à falta de lideranças políticas adequadas. Disputas internas ao
Legislativo são levadas para o outro lado da praça dos Três Poderes num sinal
evidente da baixa qualidade da representação política do Parlamento brasileiro.
Assim
como mais gente entrou para a vida democrática e pública, mais gente se
interessa pelo Supremo –inclusive por sua composição. É inevitável que isso
aconteça, uma vez que o tribunal arbitra conflitos políticos entre Poderes,
entre Estados, entre Estado e cidadãos e entre grupos da sociedade civil.
Essa
é, no fundo, a principal mudança por que passou o STF ao longo de sua história.
Suas decisões sempre produziram impacto na vida política do país, mas, com a
ampliação da cidadania, esse impacto ganhou novas formas e nova dimensão.
Se,
antigamente, apenas alguns poucos tinham acesso ao Supremo, hoje o caminho que leva
até ele foi alargado. Não é motivo para fechar suas portas, mas pode-se pensar
que muito daquilo sobre o que o STF é chamado a decidir resulta do bloqueio de
outros canais de participação política e de garantias de direitos. Atualmente,
diante de um Congresso conservador, que procura limitar direitos de toda ordem,
e de um Executivo dominado pelo discurso da ordem e da eficiência econômica, a
batalha pelas liberdades, pelos direitos e pelas igualdades será travada no
STF.
JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES, 64, professor titular
no direito da USP, é autor de "História da Justiça e do Processo no Brasil
do século XIX" (Juruá).
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