O mito do direito penal que defende a sociedade: sistema seletivo classista que expressa e reproduz a injustiça social.



Toda vez que acontece uma chacina ou confronto policial retorna o conceito de que pobre e morador de periferia são bandidos. É insubsistente essa visão que criminaliza todo um grupo social, que conforma a personalidade de uma minoria de indivíduos como “socialmente perigosa”. Alguns assuntos de fato cansam, mas se vira e mexe eles permanecem em discussão em vários ambientes, então temos que enfrentá-los.

Ele bandido porque quer ser



O argumento dessa concepção da criminalidade é que seria fundamental “ver o crime no criminoso” porque ele é sintoma revelador de conduta perigosa (antissocial), para a qual se deve dirigir uma adequada “defesa social”.
Subjacente a visão que criminaliza todo o grupo social e indivíduos há o pressuposto de que ser criminoso constitui uma propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos e grupos normais. Estabelece-se um falso amparo “científico” a tal concepção entre o (sub) mundo da criminalidade, equiparada à marginalidade e composta por uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o “mal”), e o mundo decente, da normalidade, representado pela maioria na sociedade (o “bem”).
Logo, trata-se de defender a sociedade desses seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal havendo que os “neutralizar”. Isso é o discurso do combate contra a criminalidade (o mal) em defesa da sociedade (o bem) respaldado por uma falsa cientificidade. Considero que tal visão é profundamente enraizada no sistema penal e no senso comum da sociedade
Uma conduta não é criminal “em si”, nem seu autor um criminoso por concretos traços de personalidade ou influências do meio ambiente. A criminalidade se revela mediante a definição legal de crime (que qualifica a conduta como criminal), e a seleção que identifica o autor como criminoso entre aqueles que praticam tais condutas. Por isso que, mais apropriado que falar em criminalidade é falar de criminalização, afinal “os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja interação constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualifica-las de marginais. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para o ofensor” (1).
Então, se a clientela do sistema penal é composta “regularmente” de pobres e moradores da periferia (em todos os lugares do mundo), a “minoria criminal” a que se refere aquela concepção dos criminosos (e o falso argumento da defesa da sociedade) é o resultado de um processo de criminalização altamente seletivo e desigual de “pessoas” dentro da população total, as quais se qualifica como criminoso, e não como pretende o discurso oficial do Direito Penal de uma incriminação igualitária de condutas qualificadas como tais.
O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que contra certas condutas legalmente definidas como crime, priorizando a especulação “de quem” em detrimento “do que”. Isso significa que a criminalização em vez de ser constituída por variáveis que formalmente vinculam a tomada de decisões (os códigos e instrumentos) dos agentes de controle social (polícia, ministério público e juízes), são condicionadas por variáveis latentes e não legalmente reconhecidas que aderem à “pessoa do autor” (e da vítima).
Essas variáveis latentes são retroalimentadas pelos “estereótipos” de autores e vítimas, além de “teorias de todos os dias” (teoria do senso comum da delegacia, da promotoria ou da sala de audiência judicial) dos quais são portadores os agentes do controle social, sem desconsiderar os processos da estrutura organizacional e comunicativa do sistema penal (forma de tratamento dispensada à clientela, linguagem, posturas, regras de comportamento naquele ambiente etc.).
Sem dúvida que a criminalização ser constituída por tais variáveis gera associação aos pobres, baixo status social, cor, gênero etc.
A constatação e o reconhecimento desse código social extralegal servem de explicação para o fato de que a clientela do sistema penal é constituída de pobres e moradores da periferia (minoria criminal) não porque tenham uma tendência a delinquir, mas precisamente porque tem maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes. Logo, é importante ter como certo que o próprio sistema penal é gerador da desigualdade, porque reproduz a sina de repartir os bens sociais (renda, patrimônio, status etc.) em relação inversa e em prejuízo das classes sociais menos favorecidas. Criminalidade é o exato oposto dos bens sociais, e como tal é submetida a mecanismos de distribuição desigual.
Em resumo: não passa de mito a concepção de que o sistema penal é direito igualitário, de maneira que é completamente equivocado o argumento que está na base da ideologia do direito penal como defesa da sociedade. “Em nível mais alto de abstração o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global; ou seja, das relações de poder e propriedade existentes, mais do que como instrumento de tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos” (2)
Trata-se, em conclusão, da recondução do sistema penal a um sistema seletivo classista e de violência institucional como expressão e reprodução da violência estrutural, isto é, da injustiça social.

Referência:
(1) BECKER, H. Los extraños. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 2001.
(2) BARATTA, A. Principios del derecho penal mínimo. Para uma teoria de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal. Doctrina Penal, Buenos Aires, n. 40, p. 447, 1987

___________. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997.



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