A EXPERIÊNCIA DE PARTICIPAR DE GRUPO DO WHATSAPP DO BOLSONARISMO: HORROR E APRENDIZAGEM

    O bolsonarismo se articula como um rizoma, uma rede descentralizada, um formigueiro em que indivíduos vão produzindo montagens, memes, notícias falsificadas, paródias. Algumas delas (como a falsa notícia de que Haddad teria distribuído mamadeiras em forma de pênis) viralizam para milhões de pessoas. Nesse terreno, a contra-argumentação é inútil. É preciso falar na mesma linguagem, com ética e verdade.



O texto trata-se de um relato de experiências em grupos bolsonaristas de Whatsapp, não sei de que é o texto. Mas reproduzo aqui pela importância.

Passei as duas últimas semanas da campanha do 1˚ turno infiltrado em grupos bolsonaristas de Whatsapp, tentando roubar-lhe votos, sempre em conversas privadas, fora do grupo, iniciadas com eleitores que me pareciam mais suscetíveis à dúvida. Não sei quanto sucesso tive, mas acredito ter lhe tirado, sim, algumas poucas dezenas de votos. Relatar essa experiência, a quem interessar possa, é o objetivo das linhas que seguem.

1. A primeira convicção que se instalou em mim, cristalina, é que era necessário despir-se um pouco da arrogância de quem acha que já entendeu tudo. O bolsonarismo é uma articulação inédita da extrema-direita, que não se parece com nada que conhecíamos antes. Sabemos que ele é extremista, autoritário e violento o suficiente para ser perigoso, mas ele é também uma série de outras coisas para muita gente. Não tenho nenhum problema em caracterizar Bolso como fascista, mas essa palavra, com um eleitor, não vai lhe ajudar em nada.

2. As conversas em que creio ter tido mais sucesso foram aquelas em que falei menos. Ouvir, ouvir, ouvir foi sempre o melhor caminho. Essa escuta me mostrou que os epítetos com que os eleitores de Bolso são rotulados (racistas, machistas, homofóbicos etc.) cumprem um papel bem pequeno na motivação do voto. As preocupações com segurança pública, sim, aparecem com frequência. O horror ao sistema político também tem destaque. A pauta anti-corrupção é constante. E, em primeiríssimo lugar, disparado, o anti-petismo. Esses me parecem ser os motivadores principais do voto em Bolso. As declarações misóginas, racistas e homofóbicas me parecem funcionar muito mais como uma espécie de "grito de torcida", que energizam a base e a mantêm acesa. Isso não as torna menos graves, é óbvio. Apenas tornam-as menos relevantes na hora da persuasão.

3. Muitos já notaram uma obviedade: o Brasil não tem 49 milhões de fascistas. Mas o Brasil tem, sim, 49 milhões de anti-petistas. Esse fenômeno para você é odioso, inexplicável, inaceitável, coisa de gente burra? Anti-petismo para você é sinônimo de fascismo? É melhor você parar por aqui e desistir de ganhar voto, porque você não vai persuadir ninguém. O anti-petismo é um fenômeno real, enraizado na sociedade, com razões que se remontam ao próprio petismo. "Ah, mas o PT governou sem ameaçar as instituições democráticas! Os bancos ganharam tanto! Empresa nenhuma foi estatizada!" Sim, concordo, mas você não entenderá o anti-petismo olhando apenas a forma como o PT governou. Você terá que olhar também a forma como o PT falou, tagarelou, rotulou, discursou, fez campanha eleitoral como se fosse um partido bolchevique, etiquetando até Marina Silva como "direita fascista". Essa dinâmica entre atos de governo e atos de fala é a necessária para se entender o anti-petismo, porque o jogo duplo começou a cobrar seu preço: as pessoas não são burras e sacaram a contradição entre governar como se fosse Sarney e tagarelar como se fosse Lênin. Em suma: ou Haddad será um candidato supra-partidário, de uma frente democrática, ou não há a menor chance.

4. Não se chegará a lugar nenhum contra Bolso sem reconhecer que o discurso do golpe foi amplamente derrotado no debate livre que ocorreu na sociedade brasileira. O exemplo perfeito aqui é a campanha de Dilma Rousseff ao Senado em Minas. Toda a sua campanha foi ancorada no discurso do golpe. Tudo o que ela disse ao longo da campanha foi que "as urnas darão uma resposta ao golpe". De nada ela falou, a não ser de gópi gópi gópi. Tendo sido Presidente do Brasil por um mandato e um terço, ela concorreu contra Carlos Viana, jornalista com zero experiência política, Rodrigo Pacheco, do DEM, um partido há tempos inexpressivo em Minas, e Dinis Pinheiro, uma nulidade do minúsculo Solidariedade. Ficou atrás dos três, em quarto lugar, com 15% dos votos em uma eleição de duas vagas. Recebeu um dos mais claros e sonoros NÃO que um eleitorado já enfiou nas fuças de um político conhecido. Falar de gópi com o eleitor, a estas alturas, é pedir para perder.

5. O bolsonarismo se articula como um rizoma, uma rede descentralizada, um formigueiro em que indivíduos vão produzindo montagens, memes, notícias falsificadas, paródias. Algumas delas (como a falsa notícia de que Haddad teria distribuído mamadeiras em forma de pênis) viralizam para milhões de pessoas. Nesse terreno, a contra-argumentação é inútil. É preciso falar na mesma linguagem. É inacreditável, por exemplo, que até hoje não se tenha feito nada com o vídeo em que Bolso confessa ter estuprado galinhas e cabras.

6. Bolso é deputado há 28 anos e nunca fez nada que preste, mas passou a expressar a revolta contra o sistema político. Recebeu doações da JBS, está na lista de Furnas e utilizou de forma pouco ética o auxílio moradia, mas passou a simbolizar a luta contra a corrupção. Está no terceiro casamento, traiu a esposa (coisas que a mim, obviamente, não interessam em absoluto) e terminou um divórcio com ameaças de morte, mas passou a representar a postura "cristã". Foge da briga como um covarde, mas passou a ser o emblema do eleitorado "machão". Sempre votou em favor de um nacionalismo tosco e em defesa de corporações, mas herdou o eleitorado da centro-direita liberal privatizante. Foi explorando esses furos, essas incoerências, que acredito ter puxado alguns votos dele para Daciolo, Amoêdo, Alckmin ou Ciro, dependendo do interesse de cada eleitor.

De resto, a tarefa é inglória mesmo. Haddad é boa pessoa, mas péssimo candidato. O partido ao qual ele é filiado é detestado por metade do eleitorado. Ele tem se comportado como representante de um líder que é amado por 30% da população, mas está preso e é odiado por outros 50%. O tsunami Bolso parece uma daquelas desgraças cuja hora chegou, mas não nos está dada a possibilidade de não lutar. E o terreno é lá mesmo, no Whatsapp. Todo mundo aqui tem um parente bolsonarista. Todo bolsonarista conhece algum outro bolsonarista em um grupo de Whatsapp, que pode te pôr lá dentro em contato com eleitores volúveis. Os grupos se proliferam como coelhos, e é possível que você seja expulso de algum, mas haverá outros. É a única chance que vejo.


Como disse uma amiga, chegamos a uma inacreditável situação: o futuro de nossa democracia e dos direitos humanos no Brasil pode estar dependendo de o PT aprender a usar o Whatsapp. É o que tenho a contribuir.



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