A CONTRADIÇÃO: OS FILMES SOBRE JUDEUS PROTEGIDOS POR PERSONAGENS CORAJOSOS E O ATUAL E EXCLUSIVO FOCO QUE PRIVILEGIA O AMBIENTE FAMILIAR (VIDA PRIVADA). OU, DIANTE DO MAL, VOCÊ ARRISCARIA A VIDA OU CUIDARIA DO SEU JARDIM? – PARTE 2.

RESUMO: Discute-se a pós-modernidade, o pessimismo e a categoria “fatalismo melancólico” de Walter Benjamin. Utilizando-se de trecho do filme “O Leitor” e de artigo de Pondé (O quarto – Folha de São Paulo 1), argumenta-se que a visão de mundo, majoritária no campo da pós-modernidade, se tornou pessimista. Essa visão é aqui simbolicamente representada pela tese de que a família se tornou o único valor indiscutível aos olhos da maioria. A tese do texto abaixo é: quando a vida é privatizada existe uma banalidade do dia-a-dia e ela (a vida) é empobrecida. Todavia, alguns tipos de filmes aplaudidos pelas multidões sempre colocam a personagem em risco de morte, inclusive dos seus familiares. O que é preciso compreender para além dessa contradição?

Maria Rita Kehl e Michael Löwy | Walter Benjamin, intérprete do capitalismo como religião

 Quando o post passado perguntava, “diante do mal, você arriscaria a vida ou cuidaria do jardim?”, ele preparava o terreno para que se pudesse debater o argumento, tão caro ao chamado pós-modernismo, do pessimismo no Mundo.
Antes um ligeiro esclarecimento. Diante das discordâncias do que se entende sobre pós-modernidade, utilizo as palavras de Eagleton sobre os atributos da pós-modernidade: “Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação social, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. (...) vê o Mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e à coerência de identidade” (2)
Assim, e para continuar na matriz pós-moderna, mudou-se o tom e a substância do discurso sobre política. Ou seja, se a modernidade foi o desencantamento do sagrado e da comunidade, a pós-modernidade reclama para si a suspeita, ou a negativa, de que exista caráter estruturado das coisas e do Mundo.
Logo, o sentido da vida não é dado “pelas grandes utopias” ou “pelas verdades universais”, mas apenas no próprio indivíduo e seu mundinho, seu jardim, que ora represento na concepção de vida que foca exclusivamente todo o sentido do viver na família. Essa concepção mostra até que ponto a vida se privatizou, de modo que a família se tornou o único valor indiscutível aos olhos da maioria. Quando os filhos se tornam o único ideal de seus pais, estes não têm nada a lhes transmitir. A não ser, talvez, um “sejam felizes” (3).
Ora, é ilusório pensar que o sentido da vida para a existência possa ser um ato individual. É uma tarefa coletiva, uma tarefa cultural, da qual cada sujeito integra com sua participação. Explico. E para isso uso trecho do filme “O Leitor” e artigo de Luiz Felipe Pondé (Ob. Cit. 1).
Trata-se do trecho do julgamento da ex-guarda da SS no filme “O Leitor”, quando a personagem de Kate Winslet pergunta aos juízes: “No meu lugar, o que você faria?”. O crime em questão não era o de ter se alistado na Gestapo “por precisar de emprego”, mas o de ter trancafiado 300 prisioneiras judias dentro de uma igreja em chamas para impedi-las de fugir. O seu argumento é: “Meu dever era manter a ordem”.
Tal como nos diz M.R. Kehl (3), vou considerar que hoje seríamos todos resistentes ao nazismo. Seríamos todos heróis. É fácil julgar fatos passados através das lentes já estabelecidas pela posteridade, sobretudo quando os vencedores estão indiscutivelmente do lado, digamos, do bem.
Mas se você estivesse lá, no olho do furacão, sem entender direito o que se passava, o que teria feito? Do lado das vítimas (para neutralizar um pouco a questão), quantas famílias judias tiveram oportunidade de deixar a Alemanha e não o fizeram, incapazes de imaginar a que ponto o mal que as ameaçava poderia chegar?
Todavia, houve um momento em que se tornou impossível ignorar a irracionalidade da política de extermínio de Hitler. Então, a opção pela neutralidade deixou de existir. Cada cidadão não-judeu que optasse pelo conforto moral de pensar “isso não é comigo” sabia ser coautor dos assassinatos de seus concidadãos.
Imagino que aqui surge a pergunta: cadê a questão da pós-modernidade, o pessimismo e de se privilegiar a família nisso tudo?
É que na concepção da pós-modernidade, de pessimismo na política como meio de emancipação, as grandes questões éticas podem e devem ser decididas a partir dos parâmetros exclusivos da vida privada.  Exemplifico tal argumento: o filósofo e colunista do Jornal Folha, Pondé (Ob. Cit. 1), ao descrever a vida de uma inocente família alemã que escondia judeus num quarto da casa, descreve o drama familiar aos olhos da criança da casa, que não entende porque o pai a estaria submetendo ao desconforto, ao perigo, ao mau cheiro que exalava do misterioso quartinho fechado.
Aliás, Pondé cita uma pesquisa em que adultos que passaram por situações parecidas na infância afirmaram ter imaginado que seus pais não os amavam, pois, se os amassem, não os teriam colocado em risco por causa de estranhos (idem 1).
Portanto, repito as linhas anteriores: a questão demonstra até que ponto a vida se privatizou e a família tornou-se o único valor indiscutível aos olhos da maioria. Em outras palavras, quando os filhos se tornam o único ideal de seus pais, como aplaudir um filme que mostra a personagem colocando em risco de morte a vida de seus familiares ao proteger/ajudar judeus contra os nazistas? (3)
Indaga-se: como viveria mais tarde os adultos cujos pais enviaram vizinhos e conhecidos para a câmara de gás por amor a ele? Como suportaria gozar a vida após isso? Quanto cinismo seria preciso mobilizar para seguir vivendo indiferente às consequências dessa escolha por seus pais? (3)
Se só se pode julgar a história pela lente da história, sabemos hoje que a indiferença pelo destino dos não-familiares e a escolha de cuidar da própria vida (ignorando a dos outros) têm um nome: cumplicidade criminosa. Foi essa pretensa neutralidade, ao preço de uma brutal desidentificação com a condição humana, que instalou na Alemanha o que Hanna Arendt chamou de “banalidade do mal”.
Considero que o pessimismo que ronda a política na atualidade como solução para uma vida melhor não decorre das truncadas categorias da pós-modernidade, mas advém de não se querer ignorar do que as pessoas são capazes; do que a indiferença subserviente é capaz de provocar. Nada a ver com o suposto pessimista que não crê em nada para se manter mais ou menos de acordo com tudo. Esse é o mal do século XX e XXI, que Walter Benjamin batizou de fatalismo melancólico. Ou seja, o fatalismo melancólico, escreveu Walter Benjamin, nos abate quando nos vemos diante de um “mundo vazio”. Vazio de nossa intervenção, num quadro em que as ações humanas são  apenas privadas de valor.
Portanto, uma tentativa de conciliar a contradição social (aqui expressa entre o aplauso ao herói que coloca em risco de morte seus familiares para proteger um judeu desconhecido [vamos considerar assim] e a tese de que diante de tanta relatividade, instabilidade, hipocrisia, corrupção, inexistência de emancipação por meio coletivo deve-se cuidar do jardim, focando exclusivamente a família) pode ser: como ninguém escolhe a época em que lhe coube viver. Cada uma delas tem um preço. No caso do holocausto, os inocentes que sobreviveram para um dia se queixarem “meu pai não me amava porque protegeu estranhos” devem saber que, naquelas condições extremas, pagaram um preço baixo (3).
A pós-modernidade funda-se na negação de que todas as dimensões coletivas que, ainda que repudiadas por essa corrente de pensamento, determinam o sujeito. O maior paradoxo está no fato de se defender a separação entre cada ser humano dos outros seres humanos (em grupos familiares pequenos, restritos), dos quais depende não apenas a existência física de cada um, mas sua condição subjetiva, seu conhecimento, sua moralidade, sua socialização.


Referências:
(1) Artigo Luiz Felipe Pondé no Jornal Folha de São paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2302200924.htm>
(2) Eagleton, T. As ilusões da pós-modernidade. RJ: Zahar editores, 1996.
(3) Maria Rita Kehl apontamentos pessoais sem registro da fonte.

(4) Jaldes Reis de Meneses. Iluminismo e totalitarismo: a propósito de “O quarto”, artigo de Luiz Felipe Pondé naFolha de S. Paulo, e do filme O leitor, dirigido por Stephen Daldry.Disponível em <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1054>.

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